Ao refletir os marcos históricos da celebração de memória, dos povos negros escravizados no Brasil, especialmente no que tange à pertença Malê, os registros oficiais da história se referem à Revolta dos Malês (25 de janeiro de 1835), como data magna na reverência à matriz afro-brasileira. Contudo, recentemente, a partir da oportuna provocação do historiador Gildásio Freitas, o atual município de Lauro de Freitas – RMS, reivindica, para si, o justo reconhecimento da Freguesia de Santo Amaro do Ipitanga (antigo distrito de Ipitanga), como território berço da insurreição malê na Bahia, tendo em vista o episódio ocorrido na madrugada de 28 de fevereiro de 1814, conhecido como O Levante do Joanes, enquanto precursor dos movimentos de resistência e insurgência malê.
Ao requerer, tal revisão historiográfica, reconhecendo no âmbito das políticas afirmativas e reparatórias, a importância deste território nas narrativas da memória do povo negro, o município, mais uma vez, reitera seu compromisso e vocação quanto à reparação de suas pertenças identitárias. Ao celebrar O Levante do Joanes, o povo ipitanguense traz à baila o alargamento das pautas de afirmação, para além do recorte de raça e etnia, contemplando, também, a reflexão sobre gênero no contexto de apagamento das matrizes de África, vez que, ao apresentar tal marco histórico, institui a perspectiva do protagonismo de mulheres negras nessa revolta.
Um elemento peculiar do Levante do Joanes é, justamente, a participação de mulheres em sua liderança e, embora os restritivos registros históricos, tragam divergências quanto ao número exato e identidade dessas heroínas guerreiras da batalha, há consenso quanto à atuação dessas, a cujas memórias, reverenciamos: Francisca, Felicidade, Germana, Tereza e Ludovina. Mulheres mártires, cujas faces, a narrativa hegemônica tentou apagar e cujo legado as torna ícones de nossa resistência, honrando-nos com a inspiração para a luta por reparação e para a percepção crítica dos meandros sob os quais se registram a História.
Na contemporaneidade, a intelectual e ativista Carla Akotirene, tem difundido a reflexão acerca da interseccionalidade, que implica o cruzamento dos aspectos de raça e gênero, simultaneamente, para pautar o debate sobre estratégias de invisibilização e silenciamento do discurso, pelas políticas reparatórias e afirmativas de nossas pertenças históricas ancestrais. Talvez resida aí, a chave para a compreensão desse panorama, afinal, é notório o empenho no silenciamento da história do povo negro e, sendo O Levante do Joanes, um episódio liderado por mulheres, tanto mais conveniente seria apagar tal memória.
É importante perceber matizes do patriarcado, sob as vestes das narrativas racistas e, assim, problematizar o porquê do apagamento histórico sobre o Levante do Joanes. Reverenciar a participação de nosso território nas lutas da insurgência malê e, reconhecer nossos atores históricos, é pautar a memória e identidade no centro do debate das políticas afirmativas e reparatórias, é dever para com o ancestral e fundamental para a perpetuação da nossa memória. Mais que uma reparação para a história e a memória do povo negro, celebrar O Levante do Joanes é uma reparação histórica do protagonismo de mulheres negras.