Fígado ou ovo pro almoço, quando é possível comprar alguma proteína, casa enlamaçada no período de chuvas, falta de remédio no posto de saúde e aproximadamente R$ 500 reais por mês para sustentar três filhos em dois cômodos pequenos às margens de um manguezal. Esta é a realidade da casa de Paula Roberta, 37, moradora de Guia de Pacobaíba, bairro-distrito do município de Magé, na Baixada Fluminense. De acordo com a última Síntese dos Indicadores Sociais, ela está abaixo da linha da miséria, com US$ 1,90 per capita por dia. Em 2018, segundo o estudo, esse valor equivalia a aproximadamente R$ 145 mensais, por pessoa.
Abaixo da linha da pobreza, estão 63% das casas comandadas por mulheres negras com filhos de até 14 anos, com US$ 5,5 per capitaao dia, cerca de R$ 420 mensais. O índice representa mais que o dobro de pontos percentuais se comparado à média nacional, igualmente alarmante: 25% de toda a população está abaixo da linha da pobreza. Para mulheres brancas e com filhos, a proporção de casas abaixo da linha da pobreza é de 39,6%.
De acordo com o IBGE, há mais de 7,8 milhões de pessoas vivendo em casas chefiadas por mulheres negras. No caso daquelas chefiadas por mulheres brancas, o número absoluto é de 3,6 milhões. O arranjo com menor proporção de pessoas abaixo da linha da pobreza é o de casal sem filhos: 9%.
A conta do IBGE leva em consideração o Paridade de Poder de Compra, ou PPC, que é “utilizada para comparar o poder de compra entre diferentes países, ou moedas, e é utilizada como alternativa à taxa de câmbio”. Ou seja, com quantos reais, em comparação a dólares, um cidadão brasileiro pode comprar a mesma quantidade de bens e serviços que um cidadão americano ou indonésio.
Mas em casas como a comandada por Paula Roberta não se consegue comprar muita coisa. A renda é composta pelas faxinas em “casas de família”, que ela conseguiu começar a fazer há três meses, e pelo Bolsa Família, o programa de transferência de renda implantado pelo governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em 2003, a fim oferecer uma ajuda imediata a pessoas em situação de extrema pobreza.
Mas, de acordo com Paula, erros já fizeram seu benefício ser bloqueado, quando o “sistema” apontou que seu filho não estava frequentando regularmente a escola. Enquanto buscava comprovar que o menino ia às aulas, ela relata que já passou fome: “Mas é sempre a mulher que segura as pontas, principalmente por causa dos filhos. Vamos deixar nossos filhos passando necessidade?”, analisa, de forma retórica.
Basicamente, o dinheiro de Paula é todo direcionado para a alimentação. Com filhos de 16, 14 e oito anos, ela se preocupa em comprar frutas e biscoitos. “A gente sabendo administrar, tudo dá certo.” Questionada se sobra alguma quantia para comprar algo exclusivamente seu, ela diz que não, mas explica que recebe muita ajuda: “A moça para quem eu faço faxina às vezes me dá um presente, manda alguma coisinha para as crianças. Ela me ajuda à beça”, relata.
“Tudo falta às mulheres negras. Ela é um esteio que tem que dar conta de tudo: da fome, da falta de saneamento, da falta de saúde, de educação adequada. Então fica aquele sujeito, por acaso feminino e negro, no centro, como uma ilha rodeada de problemas. Se tivesse escola funcionando, posto de saúde funcionando, uma legislação trabalhista que não fosse discriminatória, ou seja, se elementos que não são de competência dela estivessem organizados, ela não estaria na linha de pobreza”, analisa.
Na comparação com a população branca, Santanna explica, o que ajuda a tirá-la dessa linha de extrema pobreza é, exatamente, não ter discriminações pré-estabelecidas: “Os problemas para o branco pobre podem até ser muitos, mas por questões de renda, classe ou poder, quando conseguem acessar educação, saúde pública ou privada, segurança, etc., saem de baixo da linha de pobreza para a linha do bem-estar”.
A falta de horizonte em relação a um emprego fixo, formal ou ao menos com melhor remuneração já atingiu mulheres negras do entorno das casas de Paula e Adriana. Ambas, aliás, jamais tiveram carteira assinada, e quando questionadas pela reportagem qual seria o emprego dos sonhos, responderam “trabalhar em caixa de supermercado” e “ter minha própria loja de roupas”, respectivamente.
Enquanto o emprego dos sonhos ou qualquer outro emprego não aparecem, ambas têm nos filhos e na fé seu principal esteio. Membros da Assembleia de Deus, elas esperam uma providência divina para melhorar sua qualidade de vida. “Para Deus, nada é impossível. Tenho fé que Ele vai me ajudar”, diz Adriana.