Por Haroldo Lima
“Verdadeiramente eu vivo num tempo sombrio”, disse Bertold Brecht quando crescia o nazismo na Alemanha. Angustiado, indagava “que tempo é este em que uma conversa sobre árvores chega a ser uma falta, pois implica em silenciar sobre tantos crimes?”. E, inquieto, perquiria aos insensíveis: por que a “frieza baixou” sobre tanta gente?
Tudo isso nos acode quando vemos, a 18 deste mês, em pleno século XXI, o aparato Judicial/Policial Federal do Brasil exibir, abertamente, a todo o país e ao mundo, a cena de uma pessoa, sob sua guarda, sendo humilhada de uma das formas pelas quais o Brasil escravocrata humilhava, bestialmente, os escravos, acorrentando seus pulsos, braços e pés. Porque foi assim que as coisas se deram.
O que se apurou até agora, com relação às práticas do ex-governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, configura um quadro espantoso de corrupção, desproporcional, seja pelo volume elevado da coisa extorquida, seja pela forma burlesca com que ele e seu grupo procediam. Daí porque a sociedade espera que a Justiça seja rigorosa no seu caso, como de resto sempre.
Mas, longe de todos a ideia de confundir rigor com bestialidade, justiça com estupidez, e muito menos de se resgatar, de qualquer maneira, para serem usadas agora, despudoradamente, formas escravocratas de humilhação, usuais em nosso passado, mas completamente execráveis.
O que a Polícia Federal fez com o ex-governador Sérgio Cabral, algemando suas mãos, amarrando seus braços e acorrentando seus pés, quando não existia qualquer risco de fuga, não pode passar despercebido. Foi uma ação funesta, vergonhosa, covarde, que deve ser criticada energicamente, suscitar providências e apuro de responsabilidades. Não fazer isto, é repor a dramática pergunta de Brecht, “por que tanta frieza baixou” entre nós, para aceitarmos absurdos como este?
Fui preso político no regime passado. Sequestrado, amordaçado, transportado em camburão, algemas nos pulsos, posto em solitária, por semanas, inteiramente nu, barbaramente torturado nas masmorras do sistema. Isso era o que se fazia, com variações, em todos os companheiros da luta libertária presos naquela época. E muitos foram assassinados. Era a ditadura. Mas, nem eu, nem nenhum outro companheiro de cárcere que eu me lembre, ou que ouvi falar, tivemos nossos pés acorrentados e braços amarrados.
A ilegalidade vai crescendo no Brasil acintosamente e vai mostrando suas garras ameaçadoras. O uso de algemas é regulado pela Súmula vinculante nº 11 do Supremo Tribunal Fedeeral – STF, pela qual só é lícito o seu uso em casos de “resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado”. Nada disso foi observado.
Na situação posta, duas questões sobrelevam: primeiro, como já vimos, a necessidade de se aplicar, com rigor, a legislação penal contra o réu Sérgio Cabral e, em segundo lugar, que se apure quem patrocinou, quem deu ordens, para que um preso fosse submetido a um tratamento bestial e ilegal, humilhando-o publicamente.
O uso da corrente nos pés suscita outra questão, a força da herança escravista entre nós. No país onde a escravidão vigorou, em toda sua plenitude, por mais de 358 anos e onde o regime do trabalho livre ainda não completou 130, mal vividos, preconceitos, costumes, leis, rituais, parâmetros e símbolos escravistas perduram, inclusive porque nunca foram suficientemente combatidos.
A Polícia Federal que apelou para um símbolo escravista da opressão desmedida – acorrentar os pés – não o fez, de forma alguma, por cuidados com a segurança, mas para demonstrar poder, exibir força e reafirmar autoridade. É que na mente poluída pelo atraso atávico daqueles policiais e de quem os autorizou a assim proceder, nada mais enfático para demonstrar “quem manda”, quem está por cima, do que encenar o rito do poderio escravocrata, assumindo o papel do “senhor dos escravos”.
Por último, na época da ditadura militar, sabíamos quem comandava o arbítrio que imperava, que eram os generais no Poder. Agora, o estamento militar não comanda o Estado paralelo e despótico que está funcionando, cada vez com maior desenvoltura. Quem estará dando as cartas da exceção? Será o Michel? Sem dúvida, essa figura teve seu papel traiçoeiro no planejamento e execução do golpe, mas agora está depauperado, com dificuldades para explicar o vai e vem de malas de dinheiro que circulam em seu redor. É o Judiciário? Mas quem mesmo do Judiciário? O Estado paralelo e despótico se desenvolve, mas na penumbra.
A essas alturas, valemo-nos do Patrono do Senado, dos maiores juristas brasileiros, o baiano Ruy Barbosa que com sua verve já vaticinava: “A pior ditadura é a do Judiciário. Contra ela não há a quem recorrer”.
* Haroldo Lima* é membro da Comissão Política Nacional do Comitê Central do Partido Comunista do Brasil. Deputado Federal do PCdoB-BA (1983-2003) e Diretor Geral da ANP nos Governos Lula e Dilma
Por Haroldo Lima