Povo venezuelano na rua em defesa do governo e programas sociais.
Atos violentos que em qualquer outro lugar do mundo mereceriam a definição unânime de terrorismo foram cometidos na semana passada por milícias fascistas opositoras, sob o silêncio condescendente dos jornalistas estrangeiros. A ação mais chocante foi a destruição de um depósito da rede estatal de abastecimento Mercal, com a queima de 50 toneladas de alimentos que seriam distribuídos em comunidades pobres do estado de Anzoátegui. A suprema ironia foi uma pichação pintada numa parede pelos fascistas: “No más hambre” (“Chega de fome”). Ou seja: a oposição, na busca desesperada de promover o caos, já não disfarça sua estratégia de guerra econômica. Age abertamente para agravar os problemas da escassez e da alta dos preços, com a clara intenção de culpar o governo pela crise e fragilizá-lo politicamente.
Em outra ação terrorista, na mesma semana, um grupo liderado por um ex-policial que se passou para o lado da oposição jogou granadas e disparou tiros contra a sede do Supremo Tribunal de Justiça, em Caracas, a partir de um helicóptero roubado. Só por pura sorte o episódio ficou restrito ao susto, sem vítimas. O agressor, elogiado por políticos da oposição e festejado como “herói” nas redes sociais antichavistas, ostentava na janela do helicóptero um pano com o número 350, em alusão ao dispositivo constitucional que permite – em tese – a rebelião contra qualquer governo que pratique violações aos direitos humanos. Não por acaso, na véspera do ataque, líderes oposicionistas haviam se declarado em estado de “desobediência civil” invocando justamente esse artigo da Constituição.
Escalada do terror
A atual ofensiva da burguesia venezuelana, apoiada ostensivamente pelo governo e por setores da cena política dos Estados Unidos, já completou três meses, e está muito longe de alcançar seus objetivos. A violência é empregada, em intensidade crescente, por opositores organizados em grupos armados, com treinamento militar e hierarquia de comando. Já não é simplesmente uma situação em que protestos pacíficos degeneram em confronto com policiais. É algo muito mais grave. Todos os dias, ocorrem ataques a escolas infantis, hospitais e edifícios públicos em geral, com o uso de bombas e de armas de fogo. Duas cidades tiveram suas frotas inteiras de ônibus incendiadas por esses grupos, apoiados por lideranças da oposição. Qualquer instalação pública pode se tornar um alvo – uma estação elétrica, uma delegacia de polícia, um posto de saúde, uma agência da receita federal.
A escalada do terror causou até o final de junho 92 mortes, das quais apenas 13 podem ser atribuídas às forças estatais de segurança, enquanto ao menos 24 ocorreram comprovadamente em consequência da violência opositora. Há um alto número de vítimas fatais nos ataques a estabelecimentos de comércio, quando grupos organizados incitam a população ao saque, gerando a reação dos proprietários. Várias pessoas morreram tentando ultrapassar os bloqueios de vias públicas – as famosas “guarimbas”, que geralmente têm lugar em bairros ricos e em municípios administrados por partidos de direita. Há também casos de pessoas assassinadas apenas por serem chavistas, ou identificadas como tal.
O atual ciclo de instabilidade política na Venezuela teve início em janeiro de 2016, quando se instalou a nova composição da Assembleia Nacional, em que os deputados opositores, reunidos na Mesa de Unidade Democrática (MUD), formavam uma ampla maioria. Mas logo se criou um impasse, causado pela recusa da MUD em aceitar a impugnação de três de seus parlamentares, cuja eleição foi invalidada devido ao uso de fraude. Esses três deputados tomaram posse em desafio a uma ordem do Judiciário, o que deixou o Legislativo em situação irregular, conforme interpretação do Tribunal Superior de Justiça.
A bancada da MUD, majoritária na Assembleia Nacional, declararou guerra ao Poder Executivo. Em lugar de elaborar propostas de enfrentamento da crise econômica, concentrou suas energias em sucessivas tentativas de depor Maduro por meio do impeachment, sem sucesso. Fracassou também sua campanha para convocar um referendo revogatório em que a continuidade do mandato presidencial seria submetida ao voto popular. A iniciativa naufragou diante da comprovação de que boa parte das assinaturas apresentadas à Justiça Eleitoral nas petições pelo referendo tinha sido obtida por meio de fraude.
Sem paciência para aguardar as eleições presidenciais de 2019, a oposição escolheu então o caminho do golpismo. Intensificou a sabotagem econômica, valendo-se do fato de que a maior parte da distribuição de produtos está nas mãos do empresariado, maciçamente alinhado com a direita política. Por meio da escassez artificial, do aumento dos preços e da manipulação do mercado de câmbio para desvalorizar a moeda nacional (o bolívar), os opositores têm conseguido levar adiante sua estratégia de “quanto pior, melhor”, jogando nas costas do governo a culpa pelas dificuldades da economia, já abalada pela queda dos preços do petróleo.
Em paralelo, os líderes da oposição se articularam com as autoridades estadunidenses e com setores da direita em diversos países (governos, empresas, ONGs) para aplicar o cerco político e o boicote econômico à Venezuela. Uma lei aprovada recentemente no Congresso dos EUA destina US$ 9,5 milhões para financiar os grupos contrários ao governo venezuelano, sem contar o dinheiro que é encaminhado diretamente por ONGs, empresas privadas e por atores ilegais, como as milícias paramilitares da extrema-direita colombiana.
Para reforçar o apoio externo à sua causa, líderes da oposição venezuelana chegaram a se reunir com autoridades e congressistas em Washington, pedindo o envio de tropas para depor o governo do seu próprio país. Imaginem, só por hipótese, o que aconteceria se deputados estadunidenses viajassem a um país estrangeiro para pedir o uso de força militar a fim de expulsar Donald Trump da Casa Branca. Na Venezuela, chamada de “ditadura” pela mídia burguesa brasileira e internacional, os parlamentares que defendem a intervenção externa circulam em liberdade, continuam a exercer seus mandatos e se expressam diariamente pela televisão, rádio e internet.
Os golpistas brasileiros e o governo neoliberal argentino se engajaram até o pescoço nessa estratégia conspirativa, logrando que a Venezuela fosse suspensa do Mercosul. Mas a cartada mais importante, no âmbito da Organização dos Estados Americanos (OEA), fracassou. O plano da diplomacia estadunidense e da direita regional era aprovar na OEA uma condenação ao governo de Maduro que significaria, na prática, o sinal verde a sanções econômicas contra a Venezuela e até mesmo a uma intervenção militar sob pretexto “humanitário”. A resistência de pequenos países do Caribe, solidários à Venezuela, e de integrantes da Alba, a Aliança Bolivariana para as Américas (Bolívia, Equador, Nicarágua, Cuba), barrou essa tentativa ao negar aos EUA e seus aliados a maioria qualificada necessária à aprovação da proposta (nesse processo, a Venezuela se retirou da OEA). Registre-se aqui a irresponsabilidade da diplomacia brasileira sob a gestão de Michel Temer, indiferente ao impacto negativo que uma guerra civil na vizinha Venezuela teria para o Brasil, com o ingresso maciço de refugiados e o tráfico de armas no nosso território, entre outros problemas.
Uma chance revolucionária
Até agora, o governo Maduro, as organizações populares e os partidos comprometidos com a Revolução Bolivariana se mantêm firmes no rumo das transformações sociais iniciadas na gestão de Hugo Chávez. Mesmo sob o assédio político, o contexto econômico internacional desfavorável e a sabotagem da burguesia local, os herdeiros políticos de Chávez dão andamento aos projetos sociais em benefício da maioria desprivilegiada. Nos últimos seis anos, a Misión Vivienda entregou 1,4 milhões de novas moradias (casas e apartamentos de qualidade) a famílias de baixa renda. Os programas de saúde, educação e aposentadoria seguem em plena vigência, sem cortes. Para fazer frente à escassez, foram criados os Comitês Locais de Abastecimento e Produção (CLAPs), que fornecem alimentos subsidiados para grande parte da população.
O estado de direito permanece em vigor e o calendário eleitoral está de pé, com eleições estaduais e municipais marcadas para o final deste ano. O conflito entre os poderes gerou uma situação de crise institucional, mas em momento algum o governo desrespeitou a Constituição. A grande iniciativa de Maduro para superar o impasse político foi a convocação, no dia 1º de maio, de uma Assembleia Nacional Constituinte, em que o verdadeiro soberano – o povo da Venezuela – é chamado a tomar em suas próprias mãos os destinos do país, num momento de crise extrema. A oposição, como já era de se esperar, cerrou fileiras contra a proposta.
A rejeição à Constituinte se concentra em dois pontos. Os opositores contestam a legalidade da sua convocação por Maduro, alegando que o chamado teria de ser submetido a um referendo. Porém a atual Carta Magna é clara ao dar ao presidente esse tipo de atribuição. O segundo ponto, mais importante, diz respeito à composição da futura Assembleia Constituinte, em que dois terços dos integrantes serão escolhidos pelo método convencional, com base nos distritos eleitorais, e o terço restante das cadeiras será ocupada por representantes de setores específicos da sociedade – trabalhadores urbanos, camponeses, empresários, indígenas e aposentados, entre outros.
A inovação significa um avanço em relação à democracia liberal – sistema político que tem como base o voto atomizado do eleitor individual, limitando-se a soberania popular ao exercício periódico do voto, sem a existência de qualquer controle posterior sobre a conduta dos representantes. A Constituinte venezuelana traz como elemento inédito a experiência de combinar as formas representativa e participativa da democracia, valorizando as instâncias coletivas de prática cidadã, como os sindicatos, os movimentos sociais, as associações corporativas e os conselhos comunitários. Os representantes setoriais prestarão contas aos seus eleitores durante o período da Constituinte e deverão encaminhar as deliberações de suas bases. Mais de 52 mil venezuelanos se candidataram às eleições da Constituinte, o que dá ideia do entusiasmo que a iniciativa despertou. De qualquer modo, a nova Constituição, quando ficar pronta, será submetida a um referendo pelo voto universal – ou seja, só entrará em vigência mediante a aprovação da maioria dos venezuelanos.
A direita teme, com razão, que a dinâmica da Constituinte abra espaço para a retomada da energia revolucionária do chavismo e para a reafirmação do projeto bolivariano de emancipação social. Por isso joga todas as fichas para impedir essas eleições. Os golpistas tratam de tensionar ao máximo a cena política na expectativa de provocar um racha entre os militares e de estender os tumultos aos bairros populares, redutos históricos do chavismo. Mas a estratégia opositora não está alcançando os resultados esperados. Todos os sinais indicam que as Forças Armadas permanecem coesas, respaldando as legítimas autoridades, e os apelos às camadas mais pobres da população para se insurgirem contra o governo têm caído no vazio. O máximo que os opositores conseguiram até o presente momento foi atrair para o seu lado a procuradora-geral da república, Luisa Ortega, que agora – invertendo totalmente suas posições anteriores – faz de tudo para bloquear a Constituinte e dificultar a punição aos opositores envolvidos em atos de violência.
Sob forte pressão, o campo governista utiliza todos os meios legais para neutralizar a ofensiva da direita. O elemento mais importante na resistência é a mobilização das bases chavistas, com a formação de comitês de autodefesa em todo o país, encarregados de proteger o patrimônio público contra o terror paramilitar. Gigantescas manifestações a favor do governo, bem maiores do que as da oposição, ocorrem com frequência, cobrindo de vermelho as ruas das principais cidades.
O tempo político na Venezuela se acelera e tudo pode acontecer nas próximas semanas. Cada momento é crucial. Ou a Revolução Bolivariana supera a paralisia burocrática dos primeiros anos após a morte de Chávez e alcança um novo patamar de radicalidade política, impondo uma derrota decisiva à burguesia e ao imperialismo, ou será esmagada de forma sangrenta, com consequências terríveis para o povo venezuelano.
* Igor Fuser é doutor em ciência política pela USP e professor de relações internacionais na Universidade Federal do ABC (UFABC), em São Bernardo do Campo (SP).