Em uma metrópole como São Paulo, a renda dos brasileiros 5% mais pobres pode não ser suficiente nem para comprar duas unidades do famoso prato feito, o pê-efe, ou um quilo de carne por mês.
Em 2021, os cerca de 10 milhões que integravam esse grupo no país viram o rendimento mensal domiciliar per capita (por pessoa) despencar para R$ 39 em média.
O tombo foi de 33,9% ante 2020 (R$ 59), o mais intenso entre as camadas da população investigadas na Pnad Contínua: Rendimento de Todas as Fontes 2021.
A pesquisa, divulgada neste mês pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), vai além do mercado de trabalho e também avalia a renda obtida com outras fontes de recursos, como benefícios sociais, aposentadorias e aluguéis.
Na capital paulista, uma refeição ao estilo prato do dia ou prato feito saía por R$ 23,90, em média, em outubro de 2021, segundo levantamento feito pelo Procon-SP em parceria com o Dieese.
Ou seja, em uma situação hipotética, os R$ 39 da renda dos brasileiros 5% mais pobres ficariam abaixo do valor de apenas dois pê-efes: R$ 47,80.
O rendimento da camada mais vulnerável também era inferior, por exemplo, ao preço de um quilo de carne de primeira na capital paulista.
Em dezembro de 2021, o produto custava R$ 42,89 em média, de acordo com outra pesquisa realizada pelo Procon-SP em parceria com o Dieese.
Na visão de economistas, os dados ilustram o tamanho do desafio social que o país enfrenta após a chegada da pandemia.
Além de serem afetados pelas restrições de inserção no mercado de trabalho e pela inflação em escalada, os mais pobres também sentiram a redução ou o fim de benefícios sociais como o auxílio emergencial, criado em 2020 e encerrado em 2021.
“No início do auxílio emergencial, a gente viu um efeito grande no combate à pobreza, e isso tinha de ser feito. Agora, a situação está muito difícil. A fila de espera por ajuda está crescendo”, diz o economista Alysson Portella, pesquisador do Insper.
Em dezembro de 2021, o preço médio de um botijão de gás de cozinha de 13 quilos foi de R$ 102,32 no Brasil, conforme a ANP (Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis).
Isso significa que, em uma família de três pessoas e com renda de R$ 39 por integrante, a compra de um botijão consumiria 87,5% do rendimento total (R$ 117).
Segundo os dados divulgados pelo IBGE neste mês, a renda individual também despencou mais de 30% na faixa dos brasileiros que estavam acima dos 5% e até os 10% mais pobres do país.
De 2020 para 2021, o rendimento médio mensal desse grupo recuou de R$ 217 para R$ 148 por pessoa, uma baixa de 31,8%, a segunda mais intensa da pesquisa.
“O pior é que, além de a renda das camadas mais pobres ser muito baixa, ela é instável. Flutua muito”, afirma o economista Marcelo Neri, diretor do centro de políticas sociais FGV Social.
“Nos últimos anos de pandemia, com a entrada e a saída do auxílio emergencial, essa volatilidade aumentou”, completa Neri, que chama atenção para o aumento da fome no Brasil como uma das consequências da atual crise.
Segundo análise recente do FGV Social, a partir de dados do Gallup World Poll, a parcela de brasileiros sem dinheiro para alimentar a si ou a sua família em algum momento dos últimos 12 meses subiu de 30% em 2019 para 36% em 2021. O percentual é recorde na série iniciada em 2006.
‘ÀS VEZES, A GENTE NÃO CONSEGUE NADA’, DIZ MÃE
Simone Maria Cordeiro, 47, viu a renda do trabalho como recicladora ficar mais incerta e enxuta após os impactos da pandemia e da inflação alta.
“Depende muito do dia. Às vezes, a gente não consegue nada”, conta.
Para bancar as despesas familiares, a moradora do Rio de Janeiro depende de doações e recursos do Auxílio Brasil e do Auxílio Gás, que somam mais de R$ 500.
Simone tem 11 filhos. Seis deles ainda vivem com ela em uma ocupação.
“Uma das salvações é que eles estudam e ganham café da manhã ou almoço na escola. Isso ajuda muito”, conta.
“A gente vai para o supermercado, mas compra só o suficiente para se manter por alguns dias. Estou lutando pela minha sobrevivência e da minha família”, acrescenta.
Responsáveis por iniciativas sociais relatam que a procura por doações de mantimentos segue aquecida, mesmo após as fases mais críticas da pandemia.
Atualmente, 33 milhões de pessoas passam fome no país, apontou o 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, divulgado neste mês.
O contingente é similar ao registrado 30 anos atrás. Em 1993, eram 32 milhões nessa situação.
“A gente percebe quando a situação piora nos territórios em que a gente atua antes de os dados do IBGE mostrarem isso”, afirma Rodrigo “Kiko” Afonso, diretor-executivo da ONG Ação da Cidadania.
“Qualquer melhora [no apoio aos vulneráveis] passa pelo combate à fome. Se a pessoa não comer, não vai conseguir procurar emprego ou estudar. Ela precisa comer”, acrescenta.
‘ASSISTÊNCIA SOCIAL NA VEIA’, AFIRMA ECONOMISTA
O economista Ely José de Mattos, professor da Escola de Negócios da PUCRS, avalia que uma melhora do cenário para as camadas mais pobres é ameaçada por uma série de dificuldades previstas para o segundo semestre de 2022.
Entre os riscos estão os sinais de desaceleração da atividade econômica, inflação persistente e um mercado de trabalho que não está totalmente recuperado das crises recentes.
Conforme Mattos, o combate à pobreza passa por projetos do poder público que considerem as diferenças existentes dentro dos grupos mais vulneráveis.
“Para os 5% mais pobres, é assistência social na veia. Não tem como ser muito diferente”, afirma.
“Se pegar uma foto dos 25% mais pobres, entre eles há muitas diferenças […]. Para alguns perfis, a gente pode trabalhar com inclusão produtiva direta, treinamentos específicos. Tudo isso é política governamental bastante direcionada”, emenda.
Com a crise econômica às vésperas das eleições, o governo Jair Bolsonaro (PL) trocou o Bolsa Família, associado a gestões petistas, pelo Auxílio Brasil, cujas famílias beneficiárias recebem um mínimo de R$ 400.
Contudo, como mostrou reportagem da Folha de S.Paulo, o novo programa ainda registrava uma fila de 764,5 mil famílias em maio.
“A gente tem de olhar com carinho para os grupos mais pobres. Inflação e desemprego são dois males vividos mais fortemente por eles”, afirma o economista Marcelo Neri, do FGV Social.
“No caso dos programas sociais, houve um desajuste. A gente precisa fazer uma volta a um aprendizado: quem é mais pobre tem de receber mais recursos do que os demais, famílias maiores também”, acrescenta