06 de Dezembro de 2018 às 21:29 Por: Penildon Silva Filho*00comentários
A análise do Regime de Colaboração é essencial para compreender o arcabouço legal da Educação brasileira a partir da Constituição de 1988, seja para estudar o financiamento, a divisão de funções entre os entes federados, a formação de professores, a qualidade da Educação, a inovação educacional e vários outros temas nesse contexto de mudanças nas políticas públicas. Houve grande avanço da Educação, a começar pelo seu investimento entre 2003 e 2015 com um aumento no orçamento. O orçamento do MEC mais do que dobrou, em valores reais, entre 2003 e 2010, e entre 2010 e 2015 houve aumento de 70%. Em todas as áreas sociais ocorreu um crescimento nos direitos assegurados às pessoas de forma geral nesse período.
Havia, é certo também, tensionamentos entre um embrião de Estado do Bem Estar Social e amarras que impediam uma atuação mais efetiva do Estado na promoção de direitos e políticas sociais e na indução do desenvolvimento econômico, porque permaneceu um arcabouço institucional do Estado Mínimo (como a Lei de Responsabilidade Fiscal) que não foi suficientemente superado. Apesar disso, o balanço geral desse intervalo de 2003 a 2015 foi positivo em todos os setores e na Educação também.
Apesar dos avanços, as forças contrárias à Educação Pública, Gratuita e Laica permaneceram vivas nesse período, da mesma maneira que nas décadas de 1930 a 1960 as forças do privatismo lideradas por Carlos Lacerda combateram os defensores da Educação Nova liderados por Anísio Teixeira, Fernando de Azevedo e posteriormente por outros como Darcy Ribeiro, Florestan Fernandes e Paulo Freire. É nesse contexto de confronto de projetos de Educação, que acompanham e são tradução do confronto de projetos de país, que analisamos o Regime de Colaboração (RC), o financiamento e o impacto da emenda constitucional de congelamento de gastos sociais.
Segundo a Constituição Federal de 1988, o RC fica estabelecido nos termos: “Art. 211. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios organizarão em Regime de Colaboração seus sistemas de ensino. § 2º Os Municípios atuarão prioritariamente no ensino fundamental e na Educação infantil. § 3º Os Estados e o Distrito Federal atuarão prioritariamente no ensino fundamental e médio. § 4º Na organização de seus sistemas de ensino, os Estados e os Municípios definirão formas de colaboração, de modo a assegurar a universalização do ensino obrigatório.”
Ainda segundo a autora Clélia Brandão Alvarenga Craveiro em sua publicação “Construção do Regime de Colaboração entre os Sistemas de Ensino: Documento Base da Conferência Nacional de Educação 2010”, define-se Regime como: “sistema político pelo qual é regido um país; modo de viver; administração de certos estabelecimentos públicos ou particulares; o conjunto das imposições jurídicas e fiscais que regem certos produtos”. E para a autora também, Colaboração é o “trabalho em comum com uma ou mais pessoas; cooperação; ajuda, auxílio, contribuição”.
Segundo Carlos Roberto Jamil Cury em seu artigo “Sistema nacional de Educação: desafio para uma Educação igualitária”, Regime de Colaboração é um “conjunto organizado sob um ordenamento com finalidade comum (valor) sob a figura de um direito”. A Constituição afirma que os entes federados deverão agir no sentido de integrar, via Regime de Colaboração, todas as políticas públicas que, necessariamente, devem assegurar ao país a sua soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político.
Na definição de atribuições entre os entes federados, deve haver a integração e participação dos Estados no planejamento e na gestão dos municípios na Educação, assim como o papel federal junto aos estados e municípios de organizador, promotor de políticas e avaliador, é importantíssimo. Nesse RC cabe à União aplicar, anualmente, nunca menos de dezoito por cento, e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios vinte e cinco por cento, no mínimo, da receita resultante de impostos, incluída a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino. Os recursos públicos devem permitir a universalização e a garantia de padrão de qualidade e equidade, nos termos do Plano Nacional de Educação, segundo a redação dada pela Emenda Constitucional nº 59, de 2009.
Há ponderações a fazer sobre os recursos para a Educação definidos na Constituição, que permitirão um entendimento melhor sobre o financiamento da Educação. É importante salientar que no cômputo de 25% dos Estados e municípios está também o recurso para a Educação Superior mantida eventualmente por esses entes federados. Logo, os recursos são destinados não somente para a Educação Básica, o que pode diminuir a receita desta última. Concordamos que deve haver investimento em todos os níveis educacionais, tanto na Educação Básica quanto Superior, mas deve-se encontrar formas de financiamento que ampliem e melhorem a Educação Superior e ao mesmo tempo garantam um mínimo de 25% dos recursos orçamentários exclusivamente para a Educação Básica nos estados, municípios e Distrito Federal, que já têm muitas atribuições e de forma crescente vem ampliando suas funções e responsabilidades, como creches, Educação Infantil, Educação de Jovens e Adultos, Educação Inclusiva, que são todas igualmente importantes, assim como a Educação Superior.
Por outro lado, a destinação de recursos públicos no Brasil não se limita às instituições públicas: FIES, Prouni, Pronatec e outros programas permitem escolas privadas receberem recursos públicos, e isso passa a ser computado como investimento público. Apesar de serem programas que se tornaram importantes, essa situação serviu para alavancar os empreendimentos privados de Educação, empreendimentos hoje muito engajados no desmonte do sistema de Educação público a partir da Reforma do Ensino Médio do governo Temer e agora do governo Bolsonaro (que analisaremos no artigo da próxima semana).
Sobre o financiamento do RC que demanda essa integração entre diferentes níveis federativos, a Lei nº 11.494 de 2007 instituiu o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), que ao ser aprovada criou uma nova sistemática de financiamento da Educação Básica, com o objetivo de efetivar o princípio constitucional da equalização do financiamento, e ela se inscreve no que foi apresentado como função da União no Regime de Colaboração de “Prestar assistência técnica e financeira aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios para o desenvolvimento de seus sistemas de ensino e o atendimento prioritário da escolaridade obrigatória, exercendo função redistributiva e supletiva”. Essa lei significou um novo patamar na relação federativa, propiciou um investimento muito superior ao seu antecessor Fundef e permitiu uma melhora significativa nos sistemas de Educação dos municípios e Estados entre 2007 e 2016.
Entretanto o Fundeb também tem limites. O Fundo é uma previsão feita no início de ano da receita para o ente federado, que pode não se concretizar ao final do exercício anual, a depender da arrecadação, dificultando o planejamento e gerando frustração de expectativas. O Fundo também é contabilizado em função do número de alunos matriculados do município ou do Estado, sendo que a estrutura e a dinâmica demográfica no Brasil de hoje demandam uma nova forma de cálculo. Temos uma diminuição da base da pirâmide demográfica, com menos filhos por casal e isso provoca uma diminuição de alunos no sistema de Educação, mas os sistemas municipais e estaduais não podem diminuir seu quadro de professores e outros itens do orçamento da Educação. Há que se pensar também em ampliação do atendimento em creches e Educação Infantil, em EJA e na Educação Inclusiva para ampliar a oferta de serviços dos municípios e conseguir manter o nível de financiamento do Fundeb.
Por fim, o Fundeb aumentou a transferência de recursos da União aos Estados e Municípios, mas não criou um fundo único de financiamento da Educação; cumpriu a função “supletiva” cabida à União, ou seja, pelo Fundo houve um aporte de recursos para os estados mais pobres, mas não um investimento por aluno igual em todas as unidades da Federação, que era uma reivindicação das regiões mais pobres, e em nossa compreensão seria o mais correto e justo. Estados com menor capacidade financeira tiveram um aporte maior de recursos pelo Fundeb, bem superior ao antigo Fundef, entretanto sem suprimir a diferença dos investimentos em Educação entre os estados. O investimento por aluno em São Paulo continua a ser bem superior ao da Bahia.
Essa deficiência seria suprida pela CAQ e Caqi (Custo Aluno Qualidade e Custo Aluno Qualidade Inicial) que foram definidos no Plano Nacional de Educação de 2014 e seriam a base de financiamento da Educação que alavancaria o investimento educacional e significou um grande avanço. Contrariando essa política, temos a Emenda Constitucional 95, que congela os investimentos públicos por 20 anos, e a aprovação da Medida Provisória da “Reforma do Ensino Médio”. Na prática essas duas medidas revogaram o último PNE. Uma trajetória que estava sendo bem sucedida de estruturação do Regime de Colaboração entre União, Estados e Municípios com um aumento significativo do financiamento e da remuneração dos professores foi paralisada e deve sofrer um enorme revés com a emenda 95 aprovada no governo Temer e que o iminente governo Bolsonaro defende.
O governo golpista de Michel Temer apresentou sua alternativa para debelar a crise de 2015 e 2016 e promover o crescimento, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 241, de 2016, que virou a Emenda Constitucional 95. Causou estranheza um governo sem mandato popular para implementar políticas tão diametralmente opostas ao que reza a Constituição Federal propor e aprovar essa emenda, que restringe os investimentos em políticas de Educação, de Saúde, de Assistência Social e Previdência a apenas o mesmo valor do ano anterior, com a correção da inflação. Isso por um período de 20 anos, até 2036.
Essa proposta significará um retrocesso em tudo que foi conquistado pela população brasileira desde a redemocratização do país. Estudos da área de Saúde e Educação indicam que o crescimento das receitas correntes líquidas (RCL) sempre é superior à inflação, pois essa é a série histórica, e se mantivermos os investimentos sociais ligados apenas à inflação, haverá um encolhimento dos percentuais para essas políticas públicas. Estudos dos conselhos dos secretários estaduais e dos secretários municipais de Saúde indicam que a aprovação dessa PEC significou uma perda de 4,09 bilhões em 2017 e de 8,64 bilhões em 2018 para a Saúde, e assim continuará progressivamente. Essa Emenda 95 revoga uma Emenda à Constituição anterior que estabelece aumento dos investimentos em Saúde desde 2010 até 2018 e essa política também acabará com os percentuais mínimos de investimento de 18% para a Educação pelo governo federal e 25% para os governos estaduais e municipais.
No campo da Educação Superior e da Educação Básica teremos muitos problemas, pois o orçamento das universidades federais e das secretarias da Educação ficarão congelados, enquanto os custos operacionais das instituições e a folha de pagamento, por força das carreiras de professores, sempre aumentarão mais que a inflação. Isso resultará no estrangulamento dos orçamentos e no congelamento dos salários dos professores e técnicos. Ao lado disso, a Emenda 95 prevê a “dispensa do servidor, a mudança nos critérios de progressão e promoção, restrições na concessão de pensões, nas aposentadorias por invalidez e no auxilia doença, além de novo arrocho na concessão do PIS/PESEP e do seguro desemprego.”
Trata-se de um retrocesso no atendimento aos direitos básicos da população, bem na linha do discurso das gestões Temer/Bolsonaro de que devemos “diminuir o SUS” ou da equipe atual e do MEC que afirma que o Brasil já chegou a “universalizar a Educação Superior”, o que contradiz os dados que hoje temos apenas 17% de jovens nas universidades; e da equipe futura do MEC, para quem os jovens devem desistir de fazer um curso superior e se dedicar a uma profissionalização precoce, por exemplo como “youtubers”, nas palavras do futuro ministro da Educação.
Toda essa mudança abrupta tem o objetivo, segundo os proponentes desse Emenda, de “restabelecer a confiança do mercado e permitir o pagamento da dívida pública”. Sabemos que não será possível pagar essa dívida pública com os juros da SELIC, que são arbitrados pelo próprio governo, tão altos para proporcionar lucros altos para o setor financista. Além da necessidade de diminuir os juros, já passou da hora de se fazer uma auditoria da dívida pública, como outros países fizeram. Essa auditoria demonstrou que grande parte dessa dívida pública de outras nações era multiplicada com a cobrança de parcelas já pagas. Com a redução da dívida a um patamar bem inferior, como foi o caso do Equador que reduziu a dívida a um terço, o resultado foi aumentar a margem do orçamento para as políticas públicas sociais e diminuir o comprometimento dos recursos públicos com o setor financeiro.
Não é possível resolver a situação fiscal do país apenas de um lado, no corte de gastos, mas deve-se pensar na receita do Estado. No Brasil quem paga mais impostos são os assalariados pobres e de classe média, enquanto que a distribuição de lucros das empresas não é taxada. No mundo apenas dois países dão essas isenções: Brasil e Letônia. Por que não temos uma escala progressiva de pagamento de imposto de renda, como nos Estados Unidos e em toda a Europa Ocidental, isentando de pagar impostos no Brasil quem ganha até 5 mil reais e aumentando apenas para quem ganha acima de 50 mil reais?
A Emenda 95 do congelamento dos gastos já está tendo os seus efeitos sentidos: destruição dos serviços públicos de Saúde e Educação, desativação da rede de Assistência Social, comprometimento tanto do SUS quanto do Regime de Colaboração na Educação. Muito se fala desde 2016 sobre as longas filas em postos de saúde, em escolas depredadas, em salários de professores congelados, mas deve-se identificar a causa dessa catástrofe social e econômica, que não está no caráter público desses serviços, mas no corte do financiamento dos mesmos e na sua inviabilização premeditada por uma emenda constitucional que não foi aprovada em nenhum país do mundo, tamanha sua irracionalidade, e só faz aprofundar a recessão cada vez mais.
*Penildon Silva Filho é professor da Ufba e doutor em Educação. Escreve para o BNews às quintas-feiras