Conta-se que as primeiras civilizações foram lideradas por caçadores e caçadoras. Em busca de comida estes homens e mulheres saíram do continente africano e seguiram em direção à Ásia, ao Oriente Médio e à Austrália. Depois foram à Europa e finalmente chegaram à América do Sul.
Estas comunidades desde cedo aprenderam a observar a natureza, a marcar as estações, acompanhar as fazes da lua e de outros astros. Havia caçadores de todos os tipos. Uns conheciam bem o caminho por terra e outros conheciam pelo mar, sobre as placas de gelo.
Se diz nos terreiros de candomblé de tradição jeje-nagô que Oxossi é Odé, literalmente “caçador”. Na verdade, Odé, a exemplo de outros conceitos que remetem aos primórdios da humanidade, diz respeito a um conjunto de famílias agrupadas em torno dessa figura que reunia em si múltiplas funções.
O caçador cumpria, dentro do seu grupo, funções políticas, econômicas, sociais, culturais e religiosas. Politicamente, o caçador era o chefe, ou a chefe. Eles lideravam o grupo, orientando-o por ocasião das decisões e o representando. Eles percorriam todas as partes da terra e conduziam com segurança as famílias que lhes acompanhavam.
Cabia também ao caçador estabelecer relações de troca, fortalecendo cada vez mais o grupo. Além disso, o caçador mantinha a coesão do mesmo e fazia as mediações entre a comunidade que liderava e outras encontradas ao longo das caminhadas. Por fim, os caçadores eram verdadeiros médicos. Eles se situavam entre a fronteira da vida e da morte, assim eles tinham o poder de transitar entre estes dois mundos.
É, pois, esta memória que as comunidades-terreiros guardam em torno da figura de Odé, que não necessariamente diz respeito ao orixá Oxossi. Fato é que tal ancestral ganhou popularidade no Brasil graças a presença significativa de africanos provenientes do reino de Ketu a partir do final do século XVIII, ocasião em que estes povos foram devastados por seus vizinhos daomeanos e enviados como escravos para o Brasil.
Na cidade de Salvador, a história do Terreiro Ile Mariolage, da saudosa Olga do Alaketu, confunde-se com a história da vinda forçada desses grupos. Sua mãe seria descendente da princesa africana Otampé Ojarô, chegada escrava para o Brasil e aqui libertada. Oxossi é a origem do povo de ketu. Ele é o verdadeiro Araketu.
Ara significa corpo, mas pode também significar sombra. A palavra ainda na palma da minha mão pode ser utilizada para evocar uma longa descendência, o povo. O povo de ketu. Assim se afirma que todos somos de Oxossi.
Oxossi é a terra virgem e não o mundo vegetal como se tem afirmado nos últimos anos. Na verdade, Oxossi é todas as terras. As que foram pisadas, as que estão ainda cobertas e também aquelas que nunca pisaremos. Por isso esse ancestral foi associado desde cedo ao corpo. Odé é o dono do corpo. É o dono da carne. Ele é a carne que reveste os nossos ossos.
Assim está explicada a expressão: todos somos de Odé. Ele é o princípio, se não de todas as comunidades, ao menos daquelas saídas da cidade de Ketu, ou do buraco de dentro do fundo de um rio chamado Ibualama. Há um mito que diz que os primeiros povos saíram desse buraco e ganharam todas as direções do mundo. Num dos rituais mais complexos reelaborados no Brasil pelas religiões de matriz africana, o axexê, festa organizada na ocasião em que uma pessoa iniciada parte para o mundo dos antepassados, se rememora algumas dessas histórias e canta-se: “ode arole lo bi ewa”, ou seja, nascemos e voltamos para o caçador.
Desta maneira, Odé acompanha todas as etapas da vida, pois ele significa o eterno nascimento e renascimento. Talvez por este motivo, desde cedo se associou esse princípio ancestral à natureza, local do qual os primeiros grupos humanos tiraram a ideia de que tudo é cíclico e por isso retorna. Assim, nos terreiros, Oxossi aparece liderando outros caçadores, ao lado do orixá Ogun, o caçador que manipulou o fogo, trazendo-o para casa e fundindo o ferro, Exu, o caçador que organizou a linguagem, tornando-se princípio de comunicação, e Ossain, também outro andarilho que elaborou o complexo sistema de classificação dos vegetais, atribuindo-lhes funções.
Na mitologia afro-brasileira, Oxossi aparece como filho de Yemanjá. Ele teria abandonado sua mãe e partido pelo mundo. Mas ele também aparece como filho de uma grande feiticeira – representação das grandes mães ancestrais –, que teria lhe ajudado a matar um grande pássaro enviado para destruir a cidade de Ketu.
Há quem afirme que Oxossi confunde-se com a sua própria mãe e quando isso acontece o seu altar é consagrado embaixo de uma jaqueira (Artocarpus heterophyllus) chamada Opa oká. Oxossi liga-se à fartura, à riqueza, à descendência, daí lhe ser associado os frutos e grãos. É o dono da comida, da carne, de todas as carnes. Talvez tenha sido por isso que alguns terreiros da cidade de Salvador o celebrem no dia de Corpus Christi, criado no século XIII pelo Papa Urbano IV com o objetivo de realçar a presença de Cristo no pão eucarístico, na comida.
A festa tinha como objetivo celebrar o corpo de Cristo em forma de carne viva. Não precisamos buscar explicações mais distantes para entender a releitura que alguns africanos fizeram dessa celebração. Isso fez com que o próprio Cristo fosse reverenciado dentro do corpo místico dos caçadores representados por Oxossi. Oxossi, que em algumas comunidades-terreiros aparece vestido a semelhança de um índio, faz também referência às inúmeras relações que povos indígenas e africanos estabeleceram desde cedo para garantir a sua sobrevivência. Oxossi é ainda reverenciado como começo.
Oxossi também é lembrado como orixá da alegria. Oxossi é representado como caçador e caçadora, mesmo quando estas imagens caíram em desuso em algumas cidades do continente africano, pois se acreditava não ter mais sentido falar num rei-caçador. Oxossi, dono do corpo, verdadeiramente negro e indígena, sempre a caminho de desvendar novos mundos, renovar as relações a fim de nos manter como os tecidos que agrupam as células que juntamente com os corpos celestes formam o entrelaçado que sustenta o Universo e explica a dinâmica da vida.
Por: Vilson Caetenano
Texto extraído do Livro Na Palma da Minha Mão