Leio, com estupefação, algumas “análises” da nossa derrota que me deixam seriamente preocupado. Vivemos a era da internet, da superficialidade, das fake news, da informação repassada e não digerida, de considerar que qualquer texto com mais de dez linhas é “textão”, e na crença de que a informação tem que ser “curta”, “objetiva”, “direta”, “criar empatia”, “porque, se não for, não será digerida”. Lógico que pelos tons das aspas eu sou um crítico deste consenso, toda unanimidade é burra, inclusive esta. A política vista com uma guerra virtual, decidida na internet, em que todo o restante perde a importância.
E nesta crendice supersticiosa num super mundo virtual, para além e acima das contradições do mundo real, todos e todas viram analistas políticos. Aliás, para ser analista político, nos dias de hoje, é melhor você desistir de fazer leituras de grossos livros de Ciência Política e Filosofia, Clausewitz? Marx? Sartre? Foucault? Maquiavel? Que nada, basta uma leitura de 10 minutos diários sobre a opinião de qualquer guru virtual. E aí pululam as soluções miraculosas, e os discursos otimistas.
Num texto se lê soluções mágicas de “como sobreviver ao fascismo”, com regras estrambóticas sobre “segurança virtual” e soluções muito práticas como, por exemplo, evitar abordar o fascismo de frente. Só uma coisas, se o fascismo avançar, não vai ser enterrar a cabeça na areia feito avestruz, ou trocar Marx por receita de bolo, que nos salvará da cadeia, da tortura, do exílio e da morte. Mas um texto que substitui o pó mágico do pirlimpimpim, com 8 parágrafos numerados é suficiente para “sobreviver ao fascismo”.
Pior que este texto e de muito sucesso também é um twitter ou algo parecido que diz que “foi bom os fascistas ganharem, o fascismo só se combate quando em lugar de uma ideia ele se torna uma realidade”. A imbecilidade deste pensamento é algo tão absurdo, que somente sou obrigado a comentá-lo porque a esquerda baixou tanto de nível de análise e leitura, que sim, é necessário explicar o óbvio. Num mundo onde tudo está tão confuso, temos que falar até as coisas triviais. Por este raciocínio “dialético”, e como conclusão necessária dele, foi ótimo para o mundo, por exemplo, que Hitler, Mussolini e Hiroito tenham comandado Itália, Japão e Alemanha, a segunda guerra mundial, o extermínio de comunistas, socialistas, social democratas, ciganos, testemunhas de Jeová, manchus, judeus, deficientes, prostitutas, homossexuais; porque só assim a “ideia” fascismo, que não podia ser combatida, pode, ao fim, com o custo de 50 milhões de vidas, ser combatida.
Como diria Spinoza, ignorância não é argumento.
Outro texto muito corrente e prenhe do mesmo otimismo estilo Pollyana moça é o que diz que “não perdemos a eleição”, e conclui que a ganhamos, porque soma os brancos e nulos como prova da “rejeição de Bolsonaro”. Duas coisas nesta “análise”, pelo mesmo raciocínio nem devíamos ter assumido o poder durante os 4 mandatos que ganhamos nas urnas, nas mesmas condições, e, um argumento ainda pior, se somados os brancos e nulos está a dimensão da rejeição de Bolsonaro, deve se usar o mesmo raciocínio para nós, e nossa rejeição seria inexpugnável.
Em suma, em lugar de assumir que a luta de classes entrou em outro patamar qualitativo, que sofremos uma derrota extremamente profunda, que o fascismo ganhou corpo, forma, partidos políticos, redes de TV e mídia em geral, que penetrou no Judiciário com força, no Ministério Público e terá o auxílio para nos caçar e cassar de todos os aparelhos de Estado, trocamos a análise minuciosa da correlação de forças por frases otimistas e receitas de bolo para escapar dele.
A nossa derrota é tremenda e profunda. O fascismo que antes era uma ameaça, agora se consolida como ideologia política de Estado. Ao ponto de o juiz de primeira instância, que condenou o candidato mais forte da esquerda, sem provas, poder ser premiado com um cargo de um superministério da Justiça, com a intenção declarada de nos perseguir. E com a promessa solene inclusive de ir ao STF depois. Se um juiz de primeira instância, com parcos recursos intelectuais e quase nenhum poder, pode fazer o estrago que fez, imaginemos um STF fascistizado, inamovível, num processo de nomeação de fascistas!
Nossa derrota é muito mais profunda do que a perda de uma eleição. Nossa derrota aliás se perfaz na redução de nossa política a disputar eleições de 4 em 4 anos e deixar de fazer a disputa para organizar os trabalhadores na base, localmente, bairro a bairro. De disputar ideologicamente os mais pobres, que largados à própria sorte. Estes foram sugados por seitas neo-pentecostais, que, em sua grande maioria, em lugar de pregar o evangelho, organizam-se como células de partidos políticos com objetivos declarados de uma pauta reacionária e conservadora.
Não sou um extremista, em lugar de objetivos concretos, não coloco a pauta máxima da Revolução Socialista. Mas entre a pauta máxima e o reduzir à luta popular às eleições, a transformação do aprofundamento da democracia em apenas aprofundar o tamanho da urna, esquecendo-nos de organizar o povo em geral e fazer a disputa ideológica, há uma distância incomensurável. Paramos de organizar o povo, negligenciamos o trabalho de base, trocamos a formação e a disputa ideológica pelas “batalhas de facebook e de whatsapp”. Ao contrário de todo mundo que acredita que perdemos as eleições nos “fake news” (para mim só um sintoma da nossa doença), perdemos as eleições porque paramos de nos organizar e trabalhar a consciência de classe. Como não há espaço vazio em política, as fake news tiveram terreno fértil para proliferar. Mas não, o pobre de direita não surgiu das fake news.
Alguém já observou como se organiza uma seita de extrema direita conservadora? 1. Tem organização territorial. 2. Tem reuniões periódicas (cultos, estudos, etc). 3. Tem estrutura hierárquica e disciplina interna. 4. Faz a disputa ideológica todo o tempo. A. Terraplanismo. B Criacionismo. C. Submissão da mulher ao homem. D. Homofobia. E. Conservadorismo nos costumes. Em resumo, tudo que fazíamos antes como partidos políticos a direita faz agora em seus aparelhos ideológicos de Estado.
E como reagimos a isto? “Reforçamos” nossa atuação no twitter, instagram, facebook, whatsapp, signal, etc. Não conseguimos raciocinar e pensar em como frágeis, sem projeto, sem formação política, inserção de massas são nossas organizações partidárias. Em lugar de uma crítica ao mundo real da nossa falta de organização e inserção partidária, é mais fácil creditar aos fake news a conta da nossa derrota.
A direita não tem ilusões como nós. Ela não faz apologia a um absurdo culto de uma “política do afeto” (já já falarei disto). Descuidamos dos aparelhos de Estado, no auge do sucesso do Governo Lula instigamos o povo a “consumir mais” e defendemos com unhas e dentes que o maior consumo da classe trabalhadora era o maior avanço do nosso Governo. Nossa pauta não foi nas ruas a universalização do SUS, a estatização de todos os serviços de saúde e de educação, a organização e educação das massas, na compreensão que um governo, ainda mais de coalização podia sim sofrer um forte revés. Trocamos a necessária e precisa análise da LUTA DE CLASSES, por crenças do tipo “republicanismo”, e acreditamos que havíamos chegado ao paraíso, e que nossos aliados circunstanciais deixariam de ser nossos inimigos de classes, devido às concessões que fizemos.
Eles não tem estas ilusões. Antes mesmo de assumir, o governo fascista já anuncia uma super-Gestapo com Sérgio Moro à frente, com promessas futuras de STF, danem-se os escrúpulos e aparências, enquanto isto, brincamos de “republicanismo” e nomeamos Fux, Joaquim Barbosa, Fachin, Carmen Lúcia, dentre outros. A política é o espaço do embate e do confronto. Não entender a dinâmica de luta permanente na política, nos fez fazer concessões inadmissíveis a nossos inimigos no aparelho de Estado, em lugar de usá-los como base da luta de classe. Nosso inimigo não é tão amador.
Emlugar de análise da dinâmica da luta de classes e da correlação de forças, inclusive de tentar entender a fragilidade da falta de organização nossa no aparelho de Estado, criamos um discurso ursinhos carinhosos da “política do afeto’. Talvez esta seja a contribuição mais tosca da esquerda brasileira às bobagens que a esquerda já fez no mundo. Em 2002 dizer a esperança vai vencer o medo tinha precisamente outro sentido. O medo anticomunista cujo símbolo era Regina Duarte, tinha que ser vencido pela esperança em dias melhores. Preciso.
Agora a tal da “política do afeto” nos invadiu, e em lugar de militantes parece que viramos um bando de telletubies ou de ursinhos carinhosos. Um valor abstrato e sem conteúdo, que em lugar de esclarecer as nossas deficiências, as mascara, com seu complemento necessário de “horizontalidade” e outros tipos de democratismos que, na verdade, só mostra como regredimos em termos de organização.
Não é a primeira vez que o fascismo toma o poder no Brasil. O Golpe de 1964 foi fascista. E demoramos 21 anos para voltar a eleger alguém fora do status quo do golpe e 24 anos para sair da sombra dele com a CF de 88. O Golpe de 2016 e a eleição de um fascista, podem agora termina de vez com a CF de 1988, e se, não nos organizarmos de forma real, disputando bairro e bairro e rua a rua os corações e mentes das pessoas, talvez demoremos outros 20 ou 40 anos para voltar ao poder, com consequências funestas para o povo brasileiro. Democracia ou barbárie e a barbárie vai se instalando.
Não tenho nenhum otimismo, ao contrário de militontos que apontam que o atual governo fascista fará tantas cagadas que o derrotaremos em 2022, lembro aos queridos amigos que este é um governo FASCISTA! Um governo que não terá escrúpulos em cassar liberdade democráticas, em perseguir, em demitir, em prender, que se apoiará em grupos paramilitares para assassinar adversários políticos, como já o fez, num experimento controlado, com Marielle Franco, e continuou fazendo entre o primeiro e o segundo turno das eleições. Esperar as eleições de 2022 será um erro fatal.
A montanha que temos de subir é alta, íngreme, não conseguiremos escalá-la sem estrutura, formação ideológica e organização. Não a enfrentaremos nem nos escondendo ou ocultando nossas opiniões, (na era digital, com os rastros que deixamos na internet, isto é só uma babaquice); nem militando na internet nos blogs, face, zap etc (embora seja importante). Arduamente temos que voltar a organizar nossas bases. Rua a rua, bairro a bairro. Recriar as células partidárias por local de trabalho e moradia, voltar a disputar política nos corações e mentes das pessoas, organizar brigadas antifascistas, fazer o trabalho ideológico diariamente, e não só em momentos de eleição. Trocar o discurso tolo de política do afeto, pelo discurso arrojado de luta de classes, que dá ao trabalhador a dimensão de qual lado ele está e qual seu papel na disputa entre Capital e Trabalho.
Sem isto, sem retomarmos as bases da organização popular negligenciadas, o fascismo durará muito. É claro que não estamos numa situação de terra arrasada. A derrota foi dura e profunda, mas não foi total. Temos um governo fascista no qual ainda funcionam aparelhos de Estado em que podemos fazer a disputa interna contra eles. Temos organizações como os sindicatos progressistas da CUT, CTB, nos quais precisamos voltar a fazer a disputa ideológica necessária, temos o MST, o MTST, as frentes, mas, o tamanho da derrota nos sinaliza que sim, havia um vácuou, um espaço político não ocupado o qual a direita ocupou, organizou os pobres a seu favor e construiu o fascismo. Não há reversão do fascismo sem disputarmos e organizarmos os trabalhadores mais pobres.
Este texto não tem receitas mágicas. Não tem soluções prontas. É pessimista e sombrio porque é realista. Ele em resumo diz que sim, sofremos uma derrota e um revés profundo que coloca a luta de classes em outro patamar no Brasil, avança o fascismo e nos coloca na defensiva. E que para sairmos desta situação só voltando a nos organizarmos na base, ideologicamente, a partir de uma perspectiva classista.
Longe de soluções mágicas ele nos coloca o desafio. Democracia de massas ou barbárie!