O governo federal anunciou que a Proposta de Lei Orçamentária para 2021 enviada ao Congresso tem um corte de 18,32% no orçamento discricionário da Educação Superior. Trata-se de mais uma redução no orçamento do sistema federal de ensino, que vem ocorrendo desde o governo Temer em 2017 e se agravou sobremaneira com o governo Bolsonaro. O atual governo aprofunda a agenda neoliberal, corta investimentos sociais, prioriza o pagamento da dívida pública e o lucro do capital financeiro, destrói as bases do Estado e da Nação ao mesmo tempo em que implementa uma agenda obscurantista contra a Ciência, a Cultura, o Conhecimento, as Universidades e os professores, pesquisadores e trabalhadores da Educação como um todo. Essa díade, neoliberalismo e obscurantismo (uma das faces do fascismo), é parte de uma estratégia maior, uma estratégia para implementar o caos e assim desconstituir as bases em que o país foi se erguendo desde a Constituinte de 1987 e da Constituição promulgada em 1988, bases em que a Educação Pública, a Saúde Pública, a Seguridade Social como um todo são pilares imprescindíveis.
O corte de 18,32% nas verbas discricionárias da Educação não é uma novidade nos orçamentos do Brasil, tendo sua série histórica de cortes iniciada em 2017. O orçamento das universidades federais apresentou um crescimento contínuo desde 2003 e se acelerou com o Programa de Reestruturação das Universidades Federais (REUNI), com a criação de 18 novas universidades, o aumento de vagas nas Universidades Federais em mais de 110% nesse período, um processo de interiorização das instituições de ensino, além da criação de uma política de assistência estudantil e da política de reserva de vagas para os estudantes egressos de escolas públicas. Apenas na Bahia, deixamos de ter apenas uma única universidade federal, a UFBA, com sede em Salvador e um curso em Cruz das Almas (Agronomia), para termos hoje seis universidades federais. A UFBA saltou para ter hoje 39 mil alunos de graduação e 7 mil alunos de mestrado e doutorado; a Universidade Federal do Recôncavo (UFRB) é hoje uma grande universidade com sede em Cruz das Almas, Cachoeira, Amargosa, Santo Antônio de Jesus, Santo Amaro e Feira de Santana; a Universidade Federal do Oeste da Bahia está presente nas cidades de Barreiras, Luís Eduardo Magalhães, Barra e Santa Maria da Vitória; e a Universidade Federal do Sul da Bahia se estabeleceu nas cidades de Itabuna/Ilhéus, Porto Seguro e Teixeira de Freitas. Além dessas instituições exclusivamente baianas, contamos ainda com a UNIVASF, Universidade Federal do Vale do São Francisco, que além de estar nos Estados de Pernambuco e do Piauí, também tem cursos em Juazeiro, Paulo Afonso e Senhor do Bomfim, e com a UNILAB (Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira) com um campus em São Francisco do Conde.
A criação dos Institutos Federais de Educação em substituição aos antigos CEFETs, herdeiros das “escolas técnicas” nas décadas de 1970 e 1980, foi uma outra revolução no acesso e interiorização dessas instituições que tem Educação Profissional Integrada, cursos pós-médios para quem terminou o Ensino Médio e cursos concomitantes para os alunos que cursam o Ensino Médio em outras instituições, além dos cursos universitários. Na Bahia há o IFBA e o IFBAIANO, sendo que o primeiro está presente em 24 cidades e o segundo em 15 cidades, subvertendo completamente a lógica de que para fazer um curso profissional ou Superior os jovens deveriam deixar suas cidades e viajar para a “cidade da Bahia” (como Salvador era conhecida). Esse sistema federal hoje apenas na Bahia tem mais de 120 mil alunos, mas em 2000 contávamos apenas com no máximo 20 mil alunos, os da UFBA em Salvador e Cruz das Almas e os alunos da Escola Técnica Federal no bairro do Barbalho em Salvador.
Essa expansão se deu com uma mudança radical no perfil do alunado, tanto pelas cotas, pelo aumento de vagas e interiorização quanto pelo fato de hoje um terço das vagas ser em cursos noturnos. Nos dias atuais, segundo a pesquisa do Fórum de Pró-Reitores de Assistência Estudantil e também corroborado pelos dados do MEC, 75% dos alunos são de famílias com até 1,5 salário mínimo per capta, ou seja, estão na faixa de vulnerabilidade social. É importante salientar que 27% dos alunos são de famílias com uma renda per capta de até meio salário Mínimo. Pela primeira vez na história brasileira, os negros (pretos e pardos) são a maioria dos estudantes. Essa situação é completamente diferente do que ocorria na década de 1990, com um contingente estudantil muito distinto, na atualidade a Universidade é mais plural socialmente e mais representativa da nossa população tanto do ponto de vista social quanto racial.
Esses avanços no campo da ampliação, expansão, democratização e diversidade nas universidades não implicou em diminuição da qualidade do ensino, da pesquisa e da extensão das instituições. Muito pelo contrário, a pesquisa está cada vez mais forte nas instituições, há um progressivo processo de internacionalização com a criação de redes de pesquisadores brasileiros e de outros lugares do mundo e as avaliações dos cursos de graduação e de pós-graduação experimentaram avanços significativos. Foi possível conjuminar a democratização e expansão da Universidade com os padrões de qualidade e excelência inerentes a instituições universitárias.
Essas conquistas hoje estão em risco por uma política que asfixia orçamentariamente as instituições desde 2017, inserindo os investimentos sociais na lógica do “teto de gastos” da “austeridade fiscal”, melhor cunhado por “austericídio”. O austericídio não resolve os problemas macroeconômicos, não promove a retomada do desenvolvimento ou criação de empregos e destrói a base produtiva do país com o discurso de contenção de gastos e de que o Estado brasileiro é muito grande ou inchado, duas inverdades. E a receita do austericídio leva a mais recessão econômica, crescimento da dívida pública, retração dos investimentos privados e crescimento da desigualdade e da exclusão social. A diminuição do tamanho e do papel do Estado não resultou em desenvolvimento econômico ou social em lugar nenhum do mundo, e os países que investiram no sentido oposto, com um forte protagonismo do Estado, como a China, têm se descolado dessa realidade de permanente estagnação e recessão econômica que acomete o Capitalismo desde 2008.
Os dados da Universidade Federal da Bahia são representativos e servem para explicitarmos o que aconteceu nos últimos anos em todas as instituições federais. Em recente pronunciamento do Reitor da UFBA, João Carlos Salles, que tratou do mais recente, mas não primeiro, corte na proposta de orçamento, isso ficou muito didático. Ver no site: https://www.youtube.com/watch?v=B31A4gbA5x4
O número de cursos de Graduação da UFBA subiu de menos de 40 para 101 cursos em 2019. Em 2013 tínhamos 122 cursos de mestrado e doutorado, mas em 2019 já contávamos com 142 cursos. O número de matrículas na graduação cresceu de 28.561 em 2010 para 39.646 em 2019; enquanto o número de discentes na pós-Graduação Stricto Sensu cresceu de 3.995 em 2010 para 7.138 em 2019. Hoje o número de alunos em cursos noturnos está em 29,8% do total de alunos, ou seja, a UFBA é noturna em quase um terço de suas matrículas.
Ao mesmo tempo em que se deu essa expansão, houve melhora na avaliação de cursos. As notas mais altas dos cursos de Graduação, 4 ou 5 segundo as avaliações do INEP-MEC, saltaram de 47,4 % do total de cursos no período 2006-2008 para 92,3 % do total de cursos em 2019. Da mesma maneira a avalição dos cursos de Pós-Graduação ficou mais positiva, passando de uma média de 4,04 em 2014 para 4,19 em 2019, e hoje a UFBA é uma instituição com a maior parte dos cursos de Pós-Graduação stricto sensu com notas 4 ou 5, na avaliação feita pela CAPES.
O número de trabalhos científicos publicados por profissionais da UFBA, registrados no Web of Science, UFBA, entre 2010 e 2019 saltou de 636 para 1.403 publicações anuais. A publicação em periódicos notadamente reconhecidos e considerados exigentes passa por uma criteriosa avaliação pelos pares, e esse resultado indica uma elevação da excelência acadêmica.
Do ponto de vista da inclusão social, com o Programa Nacional de Assistência Estudantil (PNAES), a UFBA concedeu, em 2019, 8.885 auxílios e bolsas dos programas e serviços de assistência estudantil, num aumento em relação a 2014, quando havia 7.552 desses auxílios.
Outra medida importante para compreender a grandiosidade da UFBA e a necessidade de ampliar o orçamento, ao contrário da redução que estamos experimentando desde 2017, é a metragem de área construída. Em 2015 incrementamos em 2.757,65 metros quadrados novos construídos em relação a 2014 e em 2019 chegamos a 23.521,96 metros quadrados em relação a 2014. Hoje a UFBA tem 396.519,15 m2. Esse aumento, decorrente da ampliação de salas de aula, laboratórios, bibliotecas e anexos nas unidades indica que há maior necessidade de limpeza e de segurança e os custos de luz e água são maiores.
O valor em reais do orçamento de despesas discricionárias, em dotação anual atualizada da UFBA foi a seguinte: 2011, R$ 139,5 milhões; em 2012 aumentou para R$ 163.6 milhões; em 2013 chegamos a R$ 187,2 milhões, e fomos ampliando essa parte do orçamento até 2016, quando atingimos R$ 198,49 milhões. Em 2017, começamos a ter a redução do orçamento, com R$ 173,86 milhões e fomos tendo diminuição ano a ano, até termos a previsão da PLOA 2021 de 133,38 milhões. Essa nova redução compromete e inviabiliza o funcionamento da UFBA no próximo ano, pois não se tratam de recursos novos para projetos ou bolsas, mas para o custeio, pagamento de luz, água, manutenção, terceirizados e outros. Duas observações são importantes, a primeira é que estamos falando de despesas discricionárias, são aquelas que não compõe a folha de pessoal, apenas verba para capital (novas construções e aquisição de máquinas e equipamentos) e custeio. Por outro lado, essa série histórica precisa ser atualizada por valores correspondentes aos de hoje, e os dados apresentados já estão atualizados.
Esse corte está atingindo todas as instituições federais no Brasil. Apenas na Bahia, esse corte superior a 18% nas despesas discricionárias significará um corte novo, além dos que já ocorreram desde o início do governo Temer e no governo Bolsonaro, com menos 18, 2 milhões para a UFRB; menos R$ 18,2 milhões para a UFSB; menos R$ 18,7 milhões para a UFOB e R$ 18,3 milhões para a UFBA. Nos institutos federais o corte será ainda maior, comprometendo a sua missão de garantir Educação de qualidade em todo o Estado para a juventude urbana e rural, o IFBA perderá apenas em 2021 R$ 19,4 milhões e o IFBAIANO perderá R$ 21, 7 milhões.
A destruição das universidades e institutos federais não é um acidente ou uma fatalidade devido à crise econômica, na verdade é um projeto bem articulado para abrir espaço para as empresas privadas da Educação, conforme a proposta bastante propalada pelo ministro da Economia de estabelecer um sistema de “vouchers” ou vales com determinados valores e repassar apenas para as famílias consideradas vulneráveis matricularem seus filhos em escolas privadas, na Educação Básica e Superior. Mas todo o sistema educacional seria privado, segundo essa proposta, e com subsídio estatal para essas empresas.
A crise é um momento alvissareiro para os que defendem a privatização das empresas estatais, a destruição da Educação, da Saúde e da Assistência Social públicas, para a aprovação de medidas de “teto de gastos” como a emenda constitucional 95 que congelou os investimentos sociais por 20 anos, essa última medida inédita e única no mundo, pois nenhum país com uma política de austeridade fiscal/”austericídio” teve a coragem de aprovar uma medida dessa natureza.
Esse momento de crise e de aumento das desigualdades e da exclusão social e a decorrente desorganização social, o desespero pelo aumento da fome e do desemprego e a desesperança é propício para aplicar medidas que em situação de normalidade não seriam aceitas. Os direitos sociais e os gastos públicos que significaram essa ampliação da Educação Federal entre 2003 e 2015 por exemplo são apresentados como culpados pela recessão e estagnação econômica em que vivemos, e servem de desculpa para várias reformas e medidas neoliberais, como a emenda constitucional 95 em 2016, a reforma trabalhista e a terceirização total e indiscriminada em 2017, a reforma da previdência de 2019 e agora para a desativação de setores importantes da Educação e saúde públicas. Mas todas essas reformas de Temer e Bolsonaro não cumpriram suas promessas de retomada do crescimento e saneamento das contas públicas, assim como esse novo corte só vai destruir esse patrimônio construído pelo povo brasileiro, as universidades e institutos federais, e vai lançar o país em uma nova espiral de recessão e desigualdade.
*Professor da UFBA e doutor em Educação