Omar Sanadiki/Reuters |
Por Ricardo Alemão Abreu, na revistaCartaCapital:
Com o recente avançodas forças militares sírias e seus aliados na batalha contra o Estado Islâmico e outros grupos fundamentalistas e mercenários em Aleppo, surge uma forte tendência de vitória do atual governo sírio e de seus aliados nesse prolongado conflito que envolve interesses dos EUA e das potências europeias, de um lado, e mais diretamente interesses da Rússia e do Irã, mas também da China, de outro.
Depois do início das revoltas árabes, em 2011, segundo Luiz Alberto Moniz Bandeira, em seu livro A Segunda Guerra Fria: Geopolítica e Dimensão Estratégica dos Estados Unidos – das rebeliões da Eurásia à África do Norte e ao Oriente Médio, o motivo principal da intervenção dos Estados Unidos da América (EUA) e das potências europeias no Oriente Médio e na região do Magreb seria o controle do Mar Mediterrâneo e a contenção e isolamento do Irã, além de evitar a presença da Rússia, e ainda da China, nessa região.
Diferente do caso da agressão militar à Líbia, quando a Rússia e a China se abstiveram e não utilizaram o seu direito de veto no Conselho de Segurança da ONU, e assim não tensionaram o equilíbrio de poder, desta feita no caso da Síria, os dois países tiveram outra posição.
Moniz Bandeira, o maior analista de relações internacionais brasileiro da atualidade, descreve e analisa o que se passou na preparação da agressão multinacional à Síria, que se deu paralelamente ao incitamento de conflitos internos no país árabe.
Os EUA e potências ocidentais como a França e a Inglaterra, aliados a outros países da região, se empenham, desde os preparativos feitos para o conflito, para derrubar o governo do presidente Bashar al-Assad.
O papel específico do Catar e da Arábia Saudita consiste no financiamento e na mobilização de mercenários, além do abastecimento de armas para que esses grupos, como o Estado Islâmico, lutem contra as forças armadas e contra o regime sírio.
Uma intensa campanha de mídia e de guerra psicológica, como a realizada contra o governo de Kadafi na Líbia, foi feita para influenciar a opinião pública, na Síria e no mundo, contra o governo de Bashar al-Assad, e para criar um ambiente para a aprovação, no Conselho de Segurança das Nações Unidas, de uma resolução que permitisse aos Estados Unidos, à Grã-Bretanha e à França usarem a Otan para bombardear a Síria, como fizeram na Líbia.
No entanto, o plano esbarrou na posição da Rússia e da China. Moniz Bandeira relata que as propostas de resolução contra a Síria, apresentadas pelas potências ocidentais em 4 de outubro de 2011, e em 4 de fevereiro de 2012 no Conselho de Segurança da ONU, foram vetadas pela Rússia e pela China, que, com esses vetos deixaram claro que não abririam mão de sua presença na região, nem facilitariam os planos dos EUA e das potências europeias de alterar o equilíbrio regional de forças e de dominar completamente o Mar Mediterrâneo.
Meses depois, durante o ano de 2013, a Rússia foi além, realizou movimentos diplomáticos e militares, e não permitiu que a Otan bombardeasse a Síria com mísseis Tomahawk, a partir de navios localizados no Mediterrâneo, e o chanceler russo Sergey Lavrov liderou uma saída diplomática.
O conflito na Síria, porém, continuou.
A tentativa de contenção da Rússia, que vem recuperando parte da autonomia nacional e regional que tinha no período da União Soviética, fica muito evidente no conflito que envolve a Síria.
A Rússia, desde o período soviético, tem duas bases navais na Síria, em Tartus e Latakia. Moniz Bandeira sustenta que os EUA nunca aceitaram a presença militar da União Soviética, e depois da Rússia, no Mediterrâneo, por isso seu intento de derrubar o governo de Bashar al-Asssad, e depois pressionar o eventual novo governo para que as bases navais russas na Síria desapareçam.
A China tinha investimentos em petróleo na Líbia, e ampliava a cooperação econômica com o país de posição privilegiada no Mediterrâneo. Com as agressões à Líbia e à Síria, também são objetivos dos EUA e seus aliados da Otan a contenção da China e do Irã nas regiões do Oriente Médio e norte da África. O Irã, desde o início se aliou ao governo sírio e se envolveu militarmente no conflito.
Por isso tudo, para Moniz Bandeira, o conflito na Síria é na verdade uma guerra pelo controle do Mar Mediterrâneo, que é uma região de grande relevância geopolítica e geoestratégica, e essa guerra faz parte de um conflito maior, mas não declarado, que ele denomina a Segunda Guerra Fria.
Sergey Lavrov, ministro das Relações Exteriores da Rússia, em discurso na ONU, dia 27 de setembro de 2014, criticou duramente os EUA ressaltando que “Washington declarou abertamente seu direito ao uso unilateral de força militar onde bem entenda, para fazer avançar seus próprios interesses”, citando as agressões militares no Afeganistão, no Iraque, na Líbia e na Síria, entre outras.
No conflito da Síria os interesses da Rússia, da China do Irã convergiram, e ao mesmo tempo conflitaram com os dos EUA. Não parece que China, Rússia e Irã, com esses movimentos conjuntos e alianças entre eles, deliberadamente querem confrontar-se com os EUA ou desafiar a supremacia do chamado Ocidente.
Pelo contrário, evitam isso ao máximo, mas não deixam de defender seus interesses nacionais e estratégicos, dentro dos princípios da Carta da ONU. Isso já é demais e inaceitável para os EUA e as potências ocidentais.
A aliança, que se verifica no caso do conflito na Síria, entre Rússia, China e Irã, para defender os interesses comuns desses países frente aos EUA e as potências europeias, é de fato estratégica e duradoura?
Segundo Joseph Nye, em seu livro Compreender os Conflitos Internacionais: uma introdução à Teoria e à História, em sistemas internacionais “multipolares ou de poder disperso”, as alianças entre os estados são mais flexíveis, e as chances de guerra são menores que em sistemas internacionais bipolares e mais rígidos.
Em sistemas de bipolaridade, são maiores as chances de um conflito mais alargado ou mesmo em escala global. As futuras relações entre os EUA, China, Rússia e Irã – o seu grau de flexibilidade ou de enrijecimento, e se prevalecerá a cooperação ou o conflito entre esses países –, dirão muito sobre a ordem mundial futura.
Na verdade, são os EUA que retomam, para buscar defender a sua hegemonia mundial e tentar relançar o seu status de única superpotência global, elementos de sua estratégia imperialista utilizada durante a Guerra Fria contra a União Soviética e seus aliados de então.
Resta saber como se comportarão agora os EUA em sua política externa a partir de janeiro de 2017, com a posse do novo governo de Donald Trump.
O desfecho do conflito na Síria será importante para definir o que virá pela frente neste século XXI.
* Ricardo Alemão Abreu é Mestre pelo PROLAM/USP, diretor do Instituto de Estudos Contemporâneos e Cooperação Internacional (IECInt) e integrante do Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais/GR-RI.