Para resistir ao avanço da direita no mundo, não bastam partidos políticos que repetem o surrado discurso marxista.
Com essa proposta foi criada em 11 de maio a Internacional Progressista (IP), entidade que bebe na tradição das organizações globais da esquerda surgidas no século 19, mas busca uma roupagem adequada aos tempos atuais.
Em termos práticos, propõe discussões sobre ambientalismo, desigualdade e pluralidade, com ênfase igual ou maior do que a dada à velha luta de classes. No lugar do comunismo, prega o “pós-capitalismo”.
Ainda em fase de formação, a IP foi primeiro esboçada no final de 2018, por iniciativa do senador americano Bernie Sanders e do movimento de esquerda europeia DiEM25, que tem como uma de suas maiores lideranças o ex-ministro das Finanças da Grécia Yanis Varoufakis.
“Nossa principal motivação foi o crescimento notável na última década de uma rede de líderes autoritários de direita, que pretendem representar uma nova forma, mais populista, de governo”, afirma o economista americano David Adler, coordenador-geral da entidade.
Ex-assessor de Sanders para política externa, Adler afirma que esses líderes da direita buscam, “por meio de mentiras e distorções”, implementar uma nova agenda de privatização e liberalização.
Tal rede, obviamente, tem como principal expoente o presidente Donald Trump (EUA) e inclui Jair Bolsonaro e líderes da direita radical na Europa, como Viktor Orbán (Hungria) e Andrzej Duda (Polônia), e na Ásia, como Rodrigo Duterte (Filipinas).
A eleição de Bolsonaro, afirma Adler, foi uma motivação “fundamental” para a criação da entidade. “Mostrou que há uma nova articulação da extrema direita que está ganhando impulso e força.”
Diferentemente de entidades como a tradicional Internacional Socialista, que reúne partidos e existe desde 1951, a IP é integrada por movimentos e indivíduos.
Há um conselho com 64 pessoas, com diversos expoentes da esquerda global. Exemplos são o linguista Noam Chomsky (EUA), o ex-presidente do Equador Rafael Correa, o ator Gael García Bernal (México), o ex-vice-presidente da Bolívia Álvaro García-Linera, a primeira-ministra da Islândia, Katrín Jakobsdóttir, a escritora Naomi Klein (Canadá) e o próprio Varoufakis.
Há também uma vasta gama de representantes de entidades ambientalistas. Do Brasil, são três: o ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad (PT), o ex-chanceler petista Celso Amorim e a deputada federal Áurea Carolina (PSOL-MG).
A entidade demonstra relação ambivalente com regimes ditatoriais de esquerda como Venezuela, Nicarágua ou Cuba. Nenhum desses países tem um representante no conselho da IP, mas isso não significa, afirma Adler, que serão ignorados.
No caso da Venezuela, o coordenador afirma que a Internacional Progressista está “muito interessada em dar voz para ativistas e comunidades brutalmente oprimidos por sanções dos EUA e aliados”.
Mas sobre trabalhar junto com o regime de Nicolás Maduro, ele responde com um “sem comentários”. No caso de Cuba, a IP se soma aos pedidos do fim do embargo americano, sem criticar a falta de liberdade no país.
Por enquanto, a pandemia limitou o trabalho da nascente organização a discussões online e publicação de artigos. Uma reunião de cúpula prevista para acontecer na Islândia em setembro deve ficar para 2021.
Entre os objetivos listados pela Internacional Progressista estão a defesa de sociedades democráticas, sustentáveis e igualitárias.
Um dos pontos que chamam a atenção pede a abolição do “culto ao trabalho”.
“O culto ao trabalho é profundamente destrutivo nos níveis espiritual e social. É responsável por glorificar o trabalho precário e modos indignos pelos quais as pessoas estão sobrevivendo”, afirma.
Para o ex-prefeito Fernando Haddad, a entidade é formada por “uma turma social-democrata, mas uma social-democracia do século 21”.
“Ela resgata a ideia do New Deal [plano que tirou os EUA da Grande Depressão, nos anos 1930] e coloca um ‘green’ [verde] na frente, com fortes preocupações ambientais. É uma coalizão socioambiental”, diz.
Haddad acompanhou de perto os primeiros movimentos da entidade, no final de 2018, quando, com o status de candidato que enfrentou Bolsonaro, participou nos EUA de um debate com Varoufakis.
Depois, encontrou Sanders, àquela época disputando a indicação para ser candidato a presidente dos EUA pelo Partido Democrata.
O ex-prefeito afirma que participa da entidade em caráter pessoal, e não como representante do PT. Ele diz esperar que, além da questão ambiental, a regulação financeira seja um dos grandes temas de debate.
“Onde é que esbarra o Welfare State [Estado de bem-estar social]? Na questão monetária, na questão financeira. A crítica à desregulamentação é que ela é concentradora de renda. O mundo se transformou em um grande cassino”, diz Haddad.
Para Giorgio Romano Schutte, professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC, a esquerda global tenta retomar a iniciativa após ter ficado um tanto desnorteada com a súbita ascensão de movimentos de direita nos últimos anos.
“Houve uma ascensão surpreendente, vitoriosa, de uma nova direita no mundo, que pegou de certa forma a esquerda de surpresa. Diante de uma direita desconhecida, a esquerda ficou um pouco na defensiva”, afirma Schutte, estudioso de movimentos globais de esquerda.
O coronavírus, segundo ele, acelerou um processo que já vinha se esboçando, de redefinição do papel do Estado.
“A desigualdade, as políticas industriais, a presença do Estado, a preocupação ambiental, tudo isso já vinha em alta e foi intensificado nas respostas dadas pelos governos para combater os efeitos da pandemia. Eram temas restritos à esquerda, que agora ganharam o mainstream”, afirma.
Em sua opinião, não há mais espaço para entidades de esquerda que buscavam o monopólio da articulação global, como já foi o caso da Internacional Socialista, que perdeu bastante relevância.
“Esse momento em que a esquerda busca sair da defensiva é propício para o surgimento de diversas iniciativas”, afirma.