Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:
Quem encontrou uma lamentável semelhança entre a escandalosa intervenção do FBI na eleição norte-americana, colocando uma suspeita indevida sobre a candidatura de Hillary Clinton, e o papel de protagonista que a Lava Jato tem desempenhado na vida política brasileira, inclusive nas eleições de 2014 e 2016, não deve surpreender-se. Já em 1995, num livro elogiado pelo New York Times e pelo New York Review of Books, veneráveis publicações do mundo cultural norte-americano, o escritor Michael Lind avançou uma profecia na obra “The Next American Nation.” Examinando os perigos que seriam enfrentados pelos EUA nas décadas seguintes, Lind afirmou:
– “A ameaça real não é a fragmentação entre raças, como nos Bálcas, mas a Brazilianização da América, entre as linhas de classe social. Brazilianização é simbolizada pelo crescente afastamento da elite branca americana para as barricadas de uma nação-dentro-da-nação, um mundo de condomínios privados, escolas privadas, polícia privada, planos privados de saúde e mesmo rodovias privadas.”
Lind nunca foi o mais cotado entre os profetas da cultura norte-americana, mas é preciso reconhecer que não era uma voz isolada. Um dos mais preparados críticos das políticas econômicas de austeridade e desindustrialização, o professor Danik Rodrik, mestre em Harvard, antecipava, num ensaio de 1997, o quadro hoje visível de “desintegração social interna”. A questão é essa.
Embora as pesquisas apontem para uma recuperação de Hillary nos últimos dias, mais uma vez em função de um movimento fora do figurino do FBI – que recuou da suspeita depois de alimentar um clima de suspense por dez dias – pela primeira vez na história dos EUA o fascismo chegou a reta final de uma campanha presidencial com chances reais de vitória. Este é o significado da ameaça Donald Trump.
Estamos falando de uma das mais antigas da história contemporânea, que, no final do século XVII e início do XIX, chegou a servir de exemplo da luta contra regimes tirânicos, perdendo essa condição ao se transformar em potência imperial, capaz de oprimir povos e países conforme a conveniência de seus interesses.
Em 2016, o país que após o colapso dos regimes comunistas divulgou a utopia de que as reformas estruturais iriam transformar o planeta numa harmônica Aldeia Global, encontra-se numa situação de beira de abismo. Berço e pivô da crise dos derivativos de 2008/2009, chegou a ser visto como sua solução, como ocorreu durante a Grande Depressão dos anos 30. Verifica-se, agora, que é parte do problema – e talvez o poço mais profundo, numa conjuntura sufocante de um mundo onde o fascismo emerge na Europa do Front Nacional francês, em vários países nórdicos, na Hungria, na Polônia e, inclusive, no Brasil mencionado na abertura desse texto.
O mundo dos últimos anos tornou-se menos seguro, instável e mais ameaçador. O colapso induzido de nações inteiras é ilustrado, diariamente, por barcaças de prováveis náufragos que tentam atravessar o Mediterrâneo para se alojar em acampamentos infectos no Velho Mundo, que por séculos explorou suas riquezas materiais e escravizou povos que hoje não têm para onde ir.
Ao longo de duas décadas – quase o espaço de uma geração – os Estados Unidos se consolidaram como a única potência militar do planeta. Seu orçamento bélico é dez vezes superior ao da Rússia, em segunda mas distante posição. Neste período de hegemonia sem disputa, produziram um dos maiores desastres militares e diplomáticos da história, a invasão do Iraque, e ajudaram a desmontar estados nacionais em outros pontos estratégicos do globo, como Egito e Líbia.
Nem a eleição de Barack Obama, militante formado na luta progressista em bairros pobres de Chicago, primeiro negro a chegar à Casa Branca, foi suficiente para conter a força dominante do capital financeiro e seus intermediários sobre o governo dos Estados Unidos.
Mostrando o avanço permanente dos mercados privados sobre o espaço público, a ideia clássica do sociólogo Richard Sennet retrabalhada no texto de Michael Lind, o esforço trilionário de recuperação econômica em anos recentes até trouxe impulsos reais, mas incomparavelmente modestos em relação a seus custos para a maioria e aos ganhos oferecidos à minoria de cima. O saldo nem de longe pode ser comparado ao New Deal, o programa de investimentos da Era Franklin Roosevelt, que retirou o país da Depressão. Ocorreram melhorias no plano horizontal, como queda na desigualdade entre raças, entre gêneros. Mas nenhum avanço vertical importante foi realizado, como se vê pelo destino do projeto de saúde pública de Barack Obama, um programa já modesto no nascedouro, que terminou irreconhecível depois de passar pelo moedor de carne dos lobistas privados que dirigem o Congresso, a política de Washington e dão o tom para grande parte das decisões mais importantes do planeta.
Num país onde o teto para controle de gastos públicos são uma realidade por mais de uma década, a capacidade de intervenção do Estado encontra-se reduzida a menos do que mínimo necessário.
Desde Adolf Hitler e Benito Mussolini nós sabemos que, em ambiente de decepção política, candidatos com um discurso de denúncia da democracia, apontada como um sistema fraco, corrupto e vendido, costumam fazer sucesso. Em 2000, Patrick Buchanan, um jornalista que foi um Trump precoce, com muito menos dinheiro, dizia aquilo que o candidato republicano diz hoje. Foi solenemente ignorado.
Três dias atrás, quando a candidatura de Donald Trump mostra uma democracia a beira do abismo, os brasileiros que foram informados do interesse de Michel Temer por uma eventual mudança em nosso sistema eleitoral. “Talvez fosse o caso de começar a examinar a hipótese do voto facultativo, porque aí a pessoa que quer vota, quem não quer não vota,” disse Temer, em entrevista a Mariana Godoy. O debate sobre voto obrigatório x voluntário é grande demais para caber neste espaço.
Mas o impasse atual da democracia norte-americano é uma boa oportunidade para se questionar as características de um sistema eleitoral, aparentemente democrático, pelo qual “a pessoa que quer vota, a que não quer não vota.”
A natureza facultativa do voto é um dos fatores principais, ainda que não seja o único, para a elitização crescente do sistema político dos EUA, sua incapacidade de dar respostas a maioria da população, o que se traduz numa postura de apatia cotidiana pelas disputas políticas – e explica a acolhida de projetos demagógicos, racistas, imperiais até a nostalgia, encarnados por Donald Trump.
Nos últimos 50 anos, apenas a metade de todos os adultos aptos a votar compareceu as urnas. Mesmo em disputas mais acirradas, apenas 60% foram a cabine. Autor de “O Direito de Voto – A Controversa História da Democracia nos Estados Unidos” (Editora UNESP, 2013), um levantamento exaustivo das regras eleitorais do país, Alexander Keyssar avalia que “as vozes dos mais privilegiados são ouvidas com mais força no seio do governo e o ideal de democracia — de que todas as vozes sejam ouvidas igualmente – é enfraquecido de forma consistente. “
As consequências nefastas dessa situação ficaram evidenciadas em nível inquietante nas eleições de 2000, na única ocasião em que se verificou um impasse semelhante ao de dezesseis anos depois. Naquela histórica disputa entre George W. Bush e Al Gore, o eleitorado também chegou dividido às urnas. George W Bush, republicano como a maioria da Suprema Corte que deu a palavra final, acabou aclamado numa decisão de 5 a 4, às costas da maioria da população que, pelo voto direto, havia demonstrado, com uma diferença superior a meio milhão de votos, sua preferência por Al Gore. Ao justificar o voto que favorecia Bush ao final de um debate tão intrincado como tendencioso, o juiz Anthony Scalia argumentou que a Constituição não prevê “direito de sufrágio” nos termos autônomos em que costuma ser reconhecido no mundo inteiro – mas subordina este direito ao reconhecimento do legislativo estadual, também de maioria republicana. Parecia tudo normal. Não era.
Mesmo considerando as regras constitucionais vigentes, e supondo que a argumentação republicana pudesse fazer algum sentido, é possível demonstrar uma situação muito mais grave. Para Alexander Kyessar, a natureza do debate é muito mais séria do que uma disputada guerra de versões com interesses definidos em cada lado: “com um microscópio focado nos números de cada município, e até mesmo de cada seção eleitoral do Estado, ficou claro que milhares de votos não havia sido contados, enquanto inúmeros outros podem ter sido registrado de forma errada. Em alguns municípios, de 3 a 5% de todas as cédulas foram descartadas porque estavam ‘danificadas.’ (Em Gadsden County, com uma maioria de afro-americanos, o número era de 12%). “
Essencialmente, a democracia americana convive com regras que retiram do cidadão comum a palavra final para a escolha de um presidente. Os obstáculos legais à vontade do eleitor são dois. O primeiro é que se trata de um voto indireto, que define os delegados que formam um Colégio Eleitoral de 583 votos. O segundo é que, além de indireta, a escolha não reflete com precisão a vontade do eleitor. Em apenas dois dos 50 estados, onde residem menos de 2% dos delegados, estes são escolhidos de modo proporcional, conforme o voto dos candidatos. Nos demais, vigora o sistema pelo qual o vitorioso – mesmo que seja por um único voto — leva tudo. Dessa forma, em vez de privilegiar a decisão de cada cidadão, o sistema paga tributo à força das máquinas políticas estaduais. Num sistema eleitoral onde o voto pode ser voluntário e “voluntário”, as oligarquias estaduais jogam o peso decisivo para arrebanhar eleitores para a urna. Elas também costumam ter um peso decisivo tanto nas eleições primárias – que derrubam ou mantém candidaturas.
Ao dizer que o voto é um direito do cidadão, e não uma obrigação, a legislação abriu espaço para todo tipo de pressão contra eleitores que podem vir a ser considerados indesejáveis pelas forças que controlam o processo eleitoral. A lógica que diz que ninguém pode ser obrigado a votar ajuda a esconder a possibilidade de que nem todos iriam ter o direito de votar e frequentemente seriam impedidos de fazê-lo.
Só depois de ter exibido um papel essencial na Segunda Guerra Mundial a população negra conseguiu que, ao menos no plano da teoria, os velhos esquemas de exclusão com base no racismo fossem considerados ilegais – ainda que, sob novas formas e novos pretextos, tenham sido reproduzidos ao longo de décadas e sigam aplicados até hoje. Num país que tem a maior população carcerária do mundo, pessoas com ficha criminal, mesmo com pena cumprida, costumam ser impedidas de votar – e você sabe muito bem quem é mais atingido por essa decisão.
A ideia básica é que o voto é um direito exclusivo dos chamados “homens livres,” conceito entendido como de uma pessoa que não possui nenhuma dependência dos poderes públicos que podem ter influencia sobre seu voto. Esta visão que produziu várias tentativas para excluir todo cidadão que se beneficia dos programas de assistência social e pode ser considerada fonte inspiradora do projeto persecutório que inspirou muitos adversários do Bolsa Família no Brasil. Nem aqui nem lá, contudo, envolveu executivos de bancos de investimento e outras empresas protegidas por subsídios generosos e leis amigas de Washington.