Não é fácil aceitar ou mesmo entender a grandeza de Lula. Sua humanidade extrapola qualquer classificação e qualquer tentativa de enquadramento.
Perseguido, se defendeu. Preso, não reclamou. Enlutado, sofreu em silêncio. Retirado de uma eleição à fórceps, cedeu humildemente o lugar, não sem alertar antes que a perseguição atroz migraria para a chapa substituta.
Pediu votos por cartas, porque seu direito de dar entrevistas foi criminosamente violado por nossos tribunais superiores.
Se voltarmos um pouco mais atrás, lembraremos ainda da indefectível e habitual aula de democracia ministrada pelo professor Luiz Inácio: enquanto um ex-presidente esquecido faz alarde sobre seu arrependimento por ter comprado a emenda da reeleição, Lula sequer comenta o fato de ter recusado o terceiro mandato com ênfase pública – nem a pressão da própria esquerda pela ‘pedalada antidemocrática que não houve’, nem as cifras de irritação que lhe foram necessárias para afugentar o assédio.
Quem entende melhor a democracia que Lula?
Mister é lembrar também que este cidadão do mundo perdeu três eleições seguidas sem reclamar e sem sabotar os governos que ali se edificaram com o apoio da nossa imprensa venal e das nossas elites macabras. Lula, aliás, deu legitimidade a esses governos que alçaram o poder de maneira quase sempre suspeita. Ganhar de Lula, afinal, era a grande fiança para que os governos precarizados e sem imaginação dos tucanos pudessem ‘existir’ e ser completados.
Ingratos, tucanos jamais reconhecerão essa realidade meridiana: vencer alguém como Lula é o que lhes deu alguma estatura para governar, além de uma fina película de revestimento democrático, depois consumida pelo ódio e pela inveja subscritos nos engajamentos golpistas.
Por que lembrar de tudo isso neste momento? Porque o pronunciamento de Lula nesta segunda-feira, 7 de setembro, ativa toda essa memória monumental e desproporcional de seu compromisso perene com a democracia e com o povo brasileiro.
Lula pôs a bola no chão. Enunciou o que precisa ser enunciado. Organizou o pensamento, o raciocínio. Colocou Bolsonaro no seu devido lugar (o lugar de inseto) e restabeleceu os temas relevantes, quase todos ignorados pela nossa imprensa todos os dias.
A fala ‘organizada’ de Lula, como em seus pronunciamentos na presidência, com os olhos na câmera, falando diretamente para o público, tende a provocar um efeito devastador na mesmice catastrófica do debate público brasileiro, pautado diariamente pelo que de pior a humanidade já produziu: bolsonarismo + jornalismo corporativo.
Lula sempre rompeu com essa mediocridade do jornalismo brasileiro. Este último também lhe deve a réstia de respeitabilidade que lhe caracterizou um passado já distante.
Lula humaniza o debate. Dá nome aos bois. Lembra as significações do SUS, das empresas públicas – prestes a serem privatizadas a preço de ‘tucano’ -, de um Brasil admirado no mundo todo, da responsabilidade que devemos ter com o meio ambiente, do racismo que nos esmaga diariamente.
Muita gente diz todas essas coisas que Lula disse neste pronunciamento, mas de maneira dispersa e desorganizada. Esse é o papel do líder: organizar as demandas.
Mais do que isso, Lula ativa a memória com sua cadência verbal, seu ethos, sua emoção à flor da pele, sua generosidade, seu assombroso poder de escuta subscrito em sua própria fala e na estrutura de seu discurso.
Se no Brasil existe o racismo estrutural, o machismo estrutural, a violência estrutural, por outro lado, temos em Lula a nossa generosidade estrutural, o nosso caráter estrutural, a nossa esperança estrutural.
Lula ativa todos esses sentimentos com sua fala direta e orientada para o povo.
A meu ver, essa fala demorou a acontecer. O Brasil vem sangrando anos a fio, sob escombros da indigência governamental e da falta de uma cobertura jornalística digna do nome.
Mas como penalizar Lula por isso? Até nesse aspecto, ele nos extrai o argumento: o timing para os recados históricos é estrutural naquele que sempre deu os recados históricos.
Céticos de plantão poderão dizer: “mas Lula faz lives todos os dias… Por que esse recado não chega à militância e aos entes dessubjetivados que perambulam como zumbis na areia movediça das redes sociais – e que devem ser reconquistados?
Em primeiro lugar, quem disse que “não chega”?
Em segundo lugar e explicando: são temporalidades intelectivas diferentes. A interlocução virtual não compartilha da mesma codificação do modo “pronunciamento à nação”.
Lula fez trepidar o país neste Sete de Setembro. Fez trepidar a nossa zona de conforto, a nossa tendência natural à inércia – mesmo e sobretudo dos progressistas -, a nossa estranha paciência e um grau quase cínico de compreensibilidade que definitivamente não cabe diante do mais bestializado dos seres ocupando a chefia do executivo.
Estamos quase que sendo cúmplices desta miséria humana que nos tomou o país.
É por isso que a sociedade precisa de Lula. E por isso que ele mesmo deixou claro que não aguenta mais esperar a inanição de lideranças que não lideram e de incitadores que não incitam. Ele, mais uma vez, tomou a dianteira da história e resolveu traçar mais um ciclo de semeadura de democracia e humanização social para este país – que ele tanto ama.
O recado mais impressionante de Lula é exatamente este: ele anuncia que vai fazer 75 anos e que está mais forte e sensibilizado do que nunca para dar mais uma vez e humildemente a sua contribuição ao país, mesmo depois da revolução silenciosa que ele foi capaz de construir, de posse de um projeto e de um partido político digno do nome.
O olhar de Lula, a voz de Lula, o tom de Lula, a reorganização discursiva de Lula são a vacina necessária – e já testada – para que viremos a página mais infeliz de nossa história: a página Bolsonaro, o nosso grande trauma civilizatório, a maior vergonha da história deste país – que tomou de arrasto e desmascarou em definitivo setores genocidas das nossas elites brancas.
Lula está melhor do que nunca, melhor que nos tempos do sindicato ou da presidência. Ele está mais generoso, mais humano, mais emotivo, mais preparado. É simples de entender: quando fala ao país neste momento histórico, Lula fala com toda a sua biografia, com toda a sua experiência, com todo o seu amor e com toda a sua responsividade adquirida em 580 dias de cárcere político.
Lula está sofrendo pelo povo brasileiro neste momento, como nunca sofreu antes. Porque se, antes, ele sofria pela fome dos pobres e desvalidos, agora, ele sofre pelo genocídio em curso no país. É muito mais doloroso e exige muito mais energia política, moral e espiritual.
O pronunciamento deste Sete de Setembro do verdadeiro líder deste país – e daquele que deveria estar ocupando a cadeira de presidente da República neste exato instante – mostra que o Brasil precisa de Lula mais do que nunca. O país precisa de um ser humano digno do nome, não de um ser anti-humano indigno da própria insignificância tóxica.
Que as palavras daquele que verdadeiramente nutre paixão pela vida humana cheguem o mais distante possível na imensidão deste país traumatizado pelo excesso de ódio propagado por nossa imprensa e por essa casta de milicianos que se apoderou do nosso presente.
Mais dois ou três pronunciamentos desses e o Brasil já deverá começar a respirar novamente.