Por Akemi Nitahara
Quase a metade dos jovens apreendidos por atos análogos ao tráfico de drogas que cumprem medida de internação no Departamento Geral de Ações Socioeducativas (Degase) ajudava nas despesas de casa e começou a trabalhar antes dos 14 anos, não necessariamente em atividades ilícitas.
É o que revela a pesquisa “Ganhar a vida, perder a liberdade: trabalho, tráfico e sistema socioeducativo”, do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Candido Mendes (CESeC), que ouviu 100 adolescentes internos do Degase na cidade do Rio de Janeiro. Todos cumpriam medidas ligadas ao tráfico de drogas nas unidades Dom Bosco, João Luiz Alves e PACGC. Esta última feminina.
Dos 100 entrevistados, 46 contribuíam com o sustento da casa. E uma parte dos que não contribuíam disse que os familiares não aceitavam dinheiro do tráfico. Oitenta e cinco haviam trabalhado em atividades legais, porém precárias e intermitentes; 41 começaram a trabalhar com menos de 14 anos de idade e 11 com menos de 12 anos.
As entrevistas foram feitas no segundo semestre do ano passado e os resultados só agora foram divulgados.
Para a coordenadora da pesquisa, Paula Napolião, o retrato encontrado desfaz um estereótipo do menor infrator e revela um contexto de violações de direitos ao longo da vida desses jovens, que acabam inseridos no tráfico, atividade elencada pela Organização Internacional do Trabalho como uma das piores formas de trabalho infantil.
“Eles cumprem jornada de trabalho de 12 horas por dia, com remuneração de R$3 a R$10 por hora. Isso desmistifica essa noção de que o tráfico é sinônimo de ganho fácil de dinheiro. Esses jovens já haviam entrado no mercado informal de trabalho, em bicos como lava-jatos, ajudante de pedreiro, vendedor ambulante. Eram sempre atividades mal remuneradas, intermitentes e que não davam nenhuma perspectiva de futuro para esses jovens, que acabaram caindo no varejo de drogas”.
Dois terços dos entrevistados disseram que tentaram abandonar o tráfico, mas 56 deles retornaram por falta de emprego e de dinheiro, além da necessidade de ajudar a família.
Segundo a pesquisa, 48 se declararam pardos e 34 pretos, 30% acima da representação dos negros na população fluminense.
“Isso ilustra a criminalização da pobreza, desses espaços da favela, e a ausência de políticas públicas nesses espaços periféricos. A única política pública que chega lá é na ponta do fuzil, num projeto de segurança que foca em enxugar gelo com essas operações policiais, que apreendem certa quantidade de droga e no final das contas nada muda, o tráfico não acaba e vidas são perdidas”.
A pesquisa levantou que a maioria não cometeu atos de violência, com apenas 25 dos detidos portanto arma de fogo e 39 com drogas. Do total, 86 não haviam concluído o ensino fundamental e 75 cursavam escola no Degase, sendo que 73 tinham mais de dois anos de atraso em relação à idade escolar. Entre os 100 jovens entrevistados, 59 tiveram algum familiar preso e 39 registraram mortes por assassinatos na família.
“A grande maioria dos jovens tem vontade. Eles querem fazer cursos, porque eles são colocados numa condição de ócio extremo, então, às vezes, eles ficam o dia inteiro sem fazer nada lá dentro. Imagina, num alojamento que já está funcionando com superlotação, condições de higiene precária, então eles querem qualquer coisa que dê a possibilidade de sair daquele espaço para frequentar um curso ou mesmo a escola”, explica a pesquisadora.
Cópia de penitenciárias
A coordenadora da pesquisa entende que o sistema socioeducativo brasileiro é uma réplica do sistema penitenciário e não cumpre os preceitos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que completou três décadas este ano.
“Ao invés de quebrar esse ciclo de violência no qual esse jovem está inserido muito antes de entrar no Degase, o sistema socioeducativo dá continuidade, porque não oferece outras perspectivas para esse jovem. A gente vê uma série de violações de direito quando esse jovem não tem acesso a itens básicos de higiene, por exemplo, quando esse jovem é morador da Região dos Lagos e é jogado para a capital porque não tem nenhuma unidade de internação na Região dos Lagos, ficando longe da família”.
De acordo com ela, os pesquisadores encontraram nas unidades visitadas jovens enfileirados, de cabeça baixa e mãos para trás. Dos cem adolescentes entrevistados, 29 relataram ter sofrido agressões e 18 denunciaram agressões na unidade de internação.
O relatório lembra que, em 2018, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) apurou denúncias de tortura no Degase e concluiu haver desvio da finalidade institucional e sem a prática de atividades socioeducativas.
A pesquisa apontou que os direitos dos adolescentes são violados também na abordagem policial. Dos cem participantes da pesquisa, 70 relataram roubo de pertences e agressões por parte da polícia durante a apreensão; 22 foram extorquidos; 35 disseram ter sido feridos na apreensão, sendo sete por tiro. Apenas 22 tinham sido apreendidos pela primeira vez e, em média, os adolescentes demoraram 23 dias para serem apresentados a um juiz.
Degase
Em nota, o Degase afirmou que todos os adolescentes são levados à escola diariamente. “Os jovens que se recusam a frequentar a escola são atendidos pela equipe multidisciplinar, que por meio de conversas, busca que percebam a importância de retomar seu processo de escolarização”.
Sobre cursos profissionalizantes, o departamento informa que, além do Programa Jovem Aprendiz, tem parcerias voluntárias que oferecem oficinas de leituras, horta orgânica e sustentabilidade, oficina de cartas e fortalecimento de vínculos e ressignificação de valores sociais e familiares. Segundo o Degase, as atividades esportivas são ofertadas diariamente no contra turno escolar e a participação é voluntária.
Quanto a agressões, o departamento afirma que não utiliza spray de pimenta, apenas espargidores de extratos vegetais, que somente é usado por profissionais capacitados “quando tem a finalidade de garantir a integridade física dos atendidos”.
“O Degase garante que não há qualquer tipo de punição arbitrária, todas sanções disciplinares são aplicadas conforme Regimento Interno das unidades de internação”.