Por Davi Nunes
A cartografia de um grande quilombo, lócus de resistência e liberdade de negras e negros, para ser tracejada em linguagem escrita se faz necessário pedir agô às ancestrais guerreiras (os) para não seguir em caminhos falsos: o quilombo é grande, mas é escondido para escravocrata não encontrar, só mesmo cair em fossa de bambu ponteado. Morto alguns, seguimos para delinear numa episteme de traço de mocambo, nuances da história do Quilombo do Buraco do Tatu, que se localizava no século XVIII, onde é hoje aproximadamente a área que corresponde aos bairros Itapuã e se estende até a Estrada Velha do Aeroporto, na Cidade do Salvador-Ba.
O Quilombo do Buraco do Tatu, segundo parece descrito por Clóvis Moura no “Dicionário da Escravidão Negra no Brasil” , foi fundado no ano de 1744 e permaneceu resistente até 1763. Era habitado por algumas centenas de homens e mulheres negras que conseguiram através de muita luta as suas liberdades e estruturaram um modelo civilizatório africano para enfrentar a escravização. O quilombo era em suas margens ponteadas de armadilhas escondidas nos matos, fossas, estrepes e caminho falsos formavam o seu sistema de defesa para enfrentar os capitães do mato e inimigos no geral. Tudo isso dificultou durante o tempo de sua existência a aproximação das expedições que iam para tentar destruí-lo.
A base da economia estava ligada à agricultura e a pesca, visto que até hoje em Itapuã muitos dos descendentes desses ancestrais quilombolas sobrevivem do segundo item. Além disso, para guarnecer o quilombo invadiam à noite a Cidade de Salvador para conseguir chumbo, pólvora e outros objetos para a proteção e sobrevivência da comunidade. Eram intrépidos(as) e corajosos(as). Tinham uma estratégia eficiente de proteção e atacavam também as propriedades dos escravocratas. Sabiam que era necessário bater de frente, não poderiam esmorecer e nem tão pouco só ficarem na defensiva. Não há como enfrentar quem te fez escravo só na retaguarda, entendiam isso através do saber dos ancestrais divinizados, por isso conseguiram formar uma arquitetura social que lhes permitiram ser livres dentro de toda uma estrutura de opressão e barbaridades absurdas.
Durante os dezanove anos de existência do Buraco do Tatu era constante o contato com os escravizados que se encontravam na Cidade de Salvador, articulavam ações, fugas, boicotes, havia toda uma rede de resistência que fora pressionando e criando pânico nos brancos, pois eles estavam sempre temerosos com um levante negro para tentar acabar com a escravidão.
E há de se pressupor que a sofisticação e toda engenharia que constituía o quilombo, como se pode perceber na planta que ilustra este ensaio, que esses aquilombados estavam se articulando para algo grande mesmo, visto que suas liberdades estavam constantemente ameaçadas pelos milicianos e capitães do mato. Provavelmente se preparavam para o enfrentamento maior, um levante em Salvador. A ideia de se matar os brancos para serem livres não era uma fantasmagoria, era um pensamento corrente como está muito pressuposto nas formas de organização e luta da comunidade.
Assim, no livro “Os Quilombos Baianos” o pesquisador Pedro Thomas Pedreira descreve como ocorreu o processo de destruição do Quilombo. De acordo com ele no ano de 1763 o governo interino da Bahia, formado pelo chanceler José de Carvalho de Andrade, o arcebispo Dom Frei Manoel de Santa Inês e o coronel Gonçalo Xavier de Brito e Alvim ordenou a sua destruição e para conseguir o intento organizou um grande grupo armado com cerca de duzentas pessoas: granadeiros, milicianos, capitães do mato e todos que quisessem participar da guerra ao Quilombo do Buraco do Tatu, sob o comando do capitão mor, Joaquim da Costa Carneiro. Os ataques ocorreram em 2 de setembro, os quilombolas lutaram, resistiram, mas não tinha força bélica compatível com a expedição organizada pelos brancos, foram arrasados e 61 homens e mulheres aquilombados foram presos.
O interessante nesse caso, como transcrito por Pedro Thomas Pedreira, é que a sentença condenatória aos quilombolas saiu em janeiro do ano de 1764, nesse sentido houve toda uma tramitação jurídica e que transparece, de acordo com a sentença, que ocorreu muita negociação com as mulheres e homens do Buraco do Tatu. Eles foram sentenciados a pagarem uma multa proporcional com os gastos ocorridos com a expedição do quilombo. Todos acordaram cumpri-la, era necessário novas estratégias depois que o quilombo fora destruído. Sabiam disso, e era preciso preservar a vida para que as suas histórias tivessem existência e se tornassem um libelo de luta às opressões vivenciadas pelos descendentes de africanos nesse país.
O Quilombo do Buraco do Tatu deixou a lição da necessidade de se malocar para estruturar estratégias de luta: o buraco do tatu era a fortaleza e a liberdade, foi o mocambo estruturado de muitas mulheres e homens negros(as) que nunca deixaram de lutar, nessa diáspora de desumanidades enlouquecedoras, pela liberdade.
Davi Nunes é colaborador do portal SoteroPreta, mestrando no Programa de Pós-graduação em Estudos de Linguagem- PPGEL/UNEB, poeta, contista e escritor de livro Infantil