A promessa de cessar-fogo a partir do próximo domingo (19) na Faixa de Gaza não deve interromper o projeto da Grande Israel e a expansão dos assentamentos judaicos ilegais na Cisjordânia. Essa é a avaliação do professor de direito internacional Salem Nasser, especialista em Oriente Médio, Islã e mundo árabe.
O professor da Fundação Getulio Vargas (FGV) Direito-SP analisa que o acordo anunciado pelos Estados Unidos (EUA) e pelo Catar foi uma exigência da nova administração da Casa Branca que toma posse no dia 20 de janeiro.
Porém, Salem Nasser pondera que a contrapartida pode ser a ampliação da colonização da Cisjordânia, território palestino, segundo o direito internacional, que conta com mais de 700 mil colonos judeus. Para Nasser, ninguém acredita mais na solução de dois Estados, um palestino e outro israelense, conforme defende a maior parte da comunidade internacional.
Professor de direito internacional da FGV Direito-SP, Salem Nasser, especialista em Oriente Médio, Islã e mundo árabe – Salem Nasser/Arquivo Pessoal
A chamada Grande Israel é uma proposta que existe desde o início do movimento sionista, que deu origem ao Estado de Israel e prevê a expansão do país do Rio Nilo ao Rio Eufrates, tomando partes do Egito, do Iraque, da Jordânia, do Líbano e da Arábia Saudita.
Apesar de Tel Aviv não defender essa proposta abertamente, correntes que apoiam o governo defendem, em especial, os grupo de colonos judeus da Cisjordânia e partidos de extrema-direita do país, como o Sionismo Religioso, que compõe o gabinete do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu.
Confira a entrevista completa abaixo:
Agência Brasil: Por que o governo de Netanyahu ainda não confirmou o acordo de cessar-fogo anunciado? Que hipótese podemos levantar?
Salem Nasser: Em relação a Netanyahu e a Israel, sempre há manobras e cartas escondidas, com a aceitação ou a cumplicidade dos EUA. Minha interpretação é que Netanyahu foi pressionado a conceder um cessar-fogo antes da posse do Trump; aceitou, mas exigiu que este só entrasse em vigor um dia antes da posse, no dia 19.
A desculpa para isso é que ele precisa negociar com seus ministros, especialmente os mais radicais, que veriam no acordo uma concessão; por conta desse faz de conta, justifica ações mais violentas contra a Cisjordânia, como se essas fossem agrados aos ministros para que não abandonem o governo.
Agência Brasil: O que podemos esperar do conflito a partir desse anúncio de cessar-fogo?
Salem Nasser: A primeira é que o prazo para entrada em vigor do acordo de cessar-fogo assusta; até domingo [19], dá tempo de matar muitos palestinos e cometer muitos massacres. Isso é um sinal de que talvez seja apenas um agrado pontual à vontade de Trump e de que talvez não dure muito.
A segunda é que o contexto mais amplo, com as mudanças na Síria, o envolvimento da Turquia, a suspensão, por enquanto, do envolvimento iraniano, iraquiano, libanês… tudo isso deixa muitas dúvidas sobre o futuro. Mais uma vez, precisamos ver baixar a poeira para começarmos a enxergar.
Mapa da Cisjordânia – Arte/Agência Brasil
Agência Brasil: Caso o acordo seja efetivado, como fica a posição do governo de Israel interna e externamente? É uma derrota para as pretensões mais ambiciosas do gabinete de Netanyahu? Afinal, parte do governo defende a imigração de palestinos e a colonização de Gaza.
Salem Nasser: Até agora, Netanyahu vende para o mundo e para a sua população um discurso de vitória e ele pode mesmo acreditar na vitória. Ele, de fato, infligiu perdas importantes a alguns de seus principais adversários. E também por conta disso nem ele nem seu governo estão dispostos a abandonar as ambições. Pelo contrário, aconteça o que acontecer, eles dependem da continuidade dessas ambições para continuarem a governar.
Um aparente recuo, temporário, em relação ao esvaziamento e à colonização de Gaza pode ser largamente compensado com tentativas de avançar a colonização da Cisjordânia, muito mais importante para o projeto de Grande Israel.
E, de novo, só depois que a poeira baixar, poderemos julgar o quanto Israel e seus apoiadores no Ocidente terão perdido, ou se terão de fato obtido vitórias estratégicas, de longo prazo.
Agência Brasil: Para o Hamas, qual o saldo do cessar-fogo nesses termos? Israel e EUA têm sustentado que o grupo não poderá mais dar as cartas em Gaza e que o governo do enclave seria transferido para a Autoridade Palestina. É factível que ele abandone sua luta?
Salem Nasser: Primeiro, podemos levar em conta o discurso dos palestinos de Gaza, enquanto comemoravam o anúncio do cessar-fogo: de modo geral, continuam orgulhosos da resistência e da sua capacidade de combater até o último momento. Esse é um crédito do Hamas.
Por outro lado, o tamanho da destruição e da tragédia humanitária coloca limites ao poder do grupo, já que concessões terão que ser feitas a quem quiser ajudar na reconstrução.
Acho uma impossibilidade acabar com o papel do grupo e dos demais da resistência. No entanto, o discurso israelense e americano fala em fazê-lo desaparecer da cena política e militar. Esse choque de perspectivas aumenta a incerteza sobre o futuro desse acordo de cessar-fogo.
Sobre o abandono da luta, como digo, não penso que o Hamas o faça. Mas, ainda que o Hamas deixasse de existir, a questão real é esta: será que os palestinos abandonarão a luta? A resposta é não, simplesmente.
Ataque israelense na Faixa de Gaza em agosto de 2024 – Reuters/Ramadan Abed/Proibida reprodução
Agência Brasil: É possível antecipar algo em relação ao futuro do conflito após esse cessar-fogo? Blinken [secretário de Estado do governo de Joe Biden] defendeu que esse seria o início da solução de dois Estados. Isso é viável? Ou devemos ter um congelamento da situação atual com Gaza e Cisjordânia abaixo do jugo de Israel?
Salem Nasser: Veja, eu ouvi partes dos discursos de Blinken e de Biden. É preciso fazer muito esforço para identificar uma frase que não seja mentirosa. Ninguém mais acredita na solução de dois Estados, e os Estados Unidos, que se confessam maiores e melhores aliados de Israel, dispostos a defendê-lo de qualquer perigo, estão em posição de entender que Israel já matou a ideia, em discursos e práticas.
De todo modo, Blinken está de saída, e a impressão que tenho é a de que Trump não está muito preocupado com a ideia de um Estado palestino. Ainda não sabemos se o cessar-fogo com o Líbano vai durar para além do dia 26 próximo, se ainda haverá outras explosões de violência envolvendo o Irã, o Iêmen, o Iraque e, sobretudo, como vai se desenrolar a violência que já está acontecendo na Cisjordânia.
Em resumo, a questão palestina ainda não está enterrada, e o história ainda vai se desenvolver. Acho que Netanyahu e seu governo não podem se dar ao luxo de um “congelamento” da situação atual. Eles precisam seguir seu projeto de Grande Israel para o qual veem hoje as circunstâncias históricas mais propícias.
Agência Brasil: Trump afirmou que trabalhará para ampliar os Acordos de Abraão [documentos firmados entre Israel e Estados árabes para normalização das relações]. Além disso, Blinken defende que é preciso ter o apoio da Arábia Saudita para o pós-conflito. Qual deve ser o papel dos governos do Oriente Médio nesse cenário pós-cessar-fogo?
Salem Nasser: Trump vai tentar retomar os Acordos de Abraão, que considerou uma das vitórias do seu primeiro mandato. Os acontecimentos de outubro de 2023 pareceram por um momento dificultar os novos acordos, principalmente o da Arábia Saudita, porque ressuscitou a questão palestina e evidenciou as injustiças da ocupação, da limpeza étnica, do apartheid e, depois, do genocídio.
E também porque mostrou uma relativa fragilidade de Israel, cuja força militar era vista como pedra angular do que seria a nova arquitetura da região. Agora, depois de os Estados Unidos terem ajudado Israel a refazer um pouco da sua imagem e depois dos golpes impostos à resistência, talvez surja novamente alguma esperança de atrair os Estados árabes.
Estes, no entanto, só aceitarão normalizar relações se virem atendidos alguns pedidos relacionados aos palestinos. Enquanto isso, os palestinos continuarão a sua luta pelo que pensam ser justo.
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