A Universidade Federal de Pelotas (UFPel) divulgou na noite de ontem o resultado da maior pesquisa já realizada para verificar a extensão da contaminação pelo novo coronavírus Sars-CoV2 no Brasil, a Epicovid19. Apesar de todas as ressalvas metodológicas – e, como veremos adiante, elas não são poucas –, os resultados permitem tirar uma conclusão inequívoca: a epidemia ainda está no começo. Mesmo nas regiões proporcionalmente mais atingidas, a imunidade verificada na população está longe dos níveis necessários para protegê-la de uma segunda onda de contágio.
Os pesquisadores coletaram dados de mais de 25 mil pessoas de 133 cidades em todos os estados do Brasil, mas em apenas 90 delas foi possível recolher uma amostra mínima de 200, submetidas a testes sorológicos. Pelos cálculos dos cientistas, a proporção de brasileiros com anticorpos ao vírus, conhecida tecnicamente como “prevalência”, foi estimada em 1,4% (de 1,3% a 1,6%). “Os dados já levam em consideração o tamanho da população de cada cidade e a validade do teste rápido utilizado”, afirmam em comunicado.
Trata-se de uma parcela ainda diminuta da população. Sobretudo se levarmos em conta que, dadas as características do coronavírus e do Brasil, o patamar de imunidade necessário para reduzir a circulação dele e deter a epidemia – a “imunidade de rebanho” – é avaliado entre 40% e 70%. Se, portanto, houver relaxamento do distanciamento social nas regiões menos atingidas, é certo que a multiplicação no número de casos provocará ainda milhares de mortes.
A amostra nacional – nas 90 cidades, 337 das 21.782 pessoas consideradas na análise testaram positivo para o Sars-CoV2 – é robusta o bastante para garantir tal conclusão. Estatisticamente, levando em conta o tamanho da amostra e a população brasileira, o resultado real estaria, com uma confiança de 95%, dentro de uma margem de 0,16% em torno da média verificada. É praticamente nula a chance de o contágio ter alcançado níveis sequer próximos da imunidade coletiva, mesmo nas regiões mais atingidas pela Covid-19.
O Norte é a região onde o vírus tem maior prevalência. Das 15 cidades com maior proporção de infectados, 11 estão lá (entre elas Belém e Manaus), duas no Nordeste (Fortaleza e Recife) e duas no Sudeste (São Paulo e Rio de Janeiro). Os resultados da pesquisa cidade a cidade devem, contudo, ser tomados com maior reserva.
Tome o exemplo de São Paulo, cidade de mais de 12 milhões de habitantes, onde foram obtidas apenas 212 amostras para teste. A prevalência calculada na pesquisa é de 3,1%, mas a margem de erro, dentro do intervalo de confiança de 95%, seria de 2,3%. No Rio de Janeiro, onde a prevalência é de 2,2%, a margem seria de 1,8%. Em Vitória, de 1,4% para uma prevalência estimada em 1,2%. No Recife, 2,2% para 3,2%. Mesmo nas cidades em que a prevalência foi maior, como Manaus (12,5%), Belém (15,1%) ou Fortaleza (8,7%), as margens seriam altas: respectivamente, 4,1%, 4,5% e 3,7%.
Outra questão que põe os números em xeque é a confiabilidade dos testes usados. Quando a maior parte da população testada ainda não pegou o vírus, os testes rápidos têm uma probabilidade alta de dar resultado falso positivo. Não é difícil entender por quê. Quando em torno de 99% da população não têm anticorpos para o vírus, boa parte dos resultados positivos virá não dos positivos reais, mas daqueles negativos que forem diagnosticados incorretamente.
Considere um teste rápido comum, cujo fabricante afirma acertar 99% dos diagnósticos negativos (tecnicamente, diz que seu teste tem 99% de “especificidade”). Parece preciso? Pois suponha então que seja aplicado a uma população de 10 mil pessoas, em que apenas 1% (100) têm anticorpos para o vírus (proporção compatível com boa parte das cidades investigadas). Pela especificidade do teste, 1% das 9.900 pessoas saudáveis provavelmente testarão positivo. Serão, portanto, 99 falsos positivos prováveis, para 100 positivos reais. Numa amostra de 10 mil pessoas, a chance de erro individual num teste rápido positivo é considerável. Que dizer de uma amostra de 200?
Os pequisadores responsáveis pela Epicovid19 afirmam ter tomado o cuidado de corrigir seus resultados levando em conta tais limitações, mas não revelaram como isso foi feito, nem a marca ou a especificidade dos testes usados. De todo modo, em que pesem tal lacuna e o efeito nas margens de erro das amostras pequenas – no máximo 250 pessoas por cidade –, resiste a conclusão essencial: todas estão distantes do patamar necessário para a “imunidade de rebanho”. Nenhuma cidade brasileira está protegida de uma nova onda de devastação.