Para quem imaginava que o Brasil havia ingressado numa fase de conformismo político absoluto, a pesquisa do Datafolha divulgada neste fim de semana contém uma revelação essencial. Nada menos que 63% dos brasileiros estão fartos do governo Michel Temer, pedem sua renúncia e querem ir às urnas para escolher um novo presidente. São números que formam o horizonte político do próximo período e devem fazer parte de articulações, conversas de pé de ouvido e protestos de rua daqui para a frente.
Numa conjuntura de colapso visível da coalização golpista que tomou posse em 12 de maio, naquele processo que o ministro Joaquim Barbosa classificou como “encenação”, esses 63% assumem a única perspectiva aceitável para enfrentar as incertezas do momento. Contra o golpe dentro do golpe, mais um “choque institucional” sem face visível em construção pelos donos do poder econômico e político que se tornaram senhores do Estado brasileiro com a deposição de Dilma Rousseff, os 63% lembram que não há melhor saída do que o voto direto. E é bom não haver uma sombra de dúvida a respeito.
Após uma vergonhosa de sucessão de “choques institucionais” e outras situações típicas de guerras políticas de beira de abismo exibidas nos últimos dias, é obrigatório reconhecer uma verdade histórica. Somente pela recuperação da soberania popular o país terá a oportunidade de substituir um governo falido em tempo recorde por um presidente eleito pelo voto direto, capaz de receber das urnas a imensa energia necessária para enfrentar uma das piores crise da história do capitalismo, que atinge o Brasil de forma especialmente dramática.
Neste ponto, o calendário ocupa um lugar essencial. Conforme a Constituição, caso Temer seja afastado até 31 de dezembro, a convocação de eleições diretas no prazo de 90 dias é um processo automático – salvo um novo “choque institucional” improvisado, sabe-se lá em qual laboratório institucional, desta vez.
A este respeito, cabe até uma piadinha esotérica. Imagine se, depois da entrevista com a presidente do STF Carmen Lucia, exibida ontem, no programa chamado Minha Estupidez, a atriz-escritora Fernanda Torres tenha sido convidada a participado de outro evento na Capital Federal. Imagine ainda, sempre neste roteiro de pura comédia de ficção política, que Fernandinha tenha sido chamada para uma conversa na residência do deputado Heráclito Fortes, o Boca Mole nas listas da Odebrecht – foi ali que ocorram vários encontros que levaram ao impeachment de Dilma – e, no final, tenha saído dali como nova candidata a presidente da República, escolhida por voto indireto. Será possível?
Ou será que a coisa anda tão confusa que acabei invertendo os papéis das duas?
A questão está colocada. Caso Michel Temer permanece no cargo após a data fatídica, ocorre uma escolha indireta pelo Congresso e aí o esforço pelo retorno a democracia será travado em circunstâncias mais difíceis. Para começar, não só haverá um (ou uma) presidente no cargo, mandato novo em folha, com direito a beneficiar-se do efeito anestesiante sobre a população que o apoio incondicional do monopólio dos meios de comunicação costuma assegurar a seus escolhidos, ao menos por um período.
Nesta circunstância, será preciso enfrentar uma luta dura nas ruas do país — e também nos corredores de Brasília — para aprovar uma emenda constitucional para garantir o voto direto, evitando que um governo escolhido pelo conchavo de gabinetes, agora sem qualquer resquício, mesmo remoto, do voto popular, possa dar sequencia ao plano de recolonização do país pelos interesses globalizados, internos e especialmente externos.
Por mais que o espírito natalino seja capaz de produzir emoções conhecidas nessas “retinas tão fatigadas”, como disse Carlos Drummond de Andrade diante daquela pedra que surgiu em seu caminho, um “fato extraordinário”, há muito deixei de acreditar na existência de Papai Noel. Não consigo imaginar que a renúncia faça parte do conjunto de opções realistas de um presidente que assumiu o governo através de um golpe de Estado articulado com base na dissimulação e na traição aos princípios democráticos. Não vejo como esperar um “ato de grandeza, após uma sucessão de opções mesquinhas. Por essa razão, ainda que a marca de 63% aponte para uma maioria confortável, irrespondível, me parece prudente acreditar que uma vitória democrática não irá ocorrer sem um grande esforço para transformar essa matemática em força política.
Em 127 anos de história, nossa República registra duas renúncias dignas deste nome. Uma delas, de Jânio Quadros, foi uma tentativa de conquistar plenos poderes numa acrobacia de circo: abandonar o governo num gesto repentino na esperança de retornar ao Planalto nos braços do povo. Foi tão ridículo que acabou abandonado até pelos aliados mais próximos.
A outra foi o tiro no peito de Getúlio. Em 1954, com a força única dos que sacrificam a própria vida, Getúlio abriu caminho para uma das maiores mobilizações populares da história brasileira, capaz de bloquear um golpe militar que se encontrava nos capítulos finais e assegurar, em 1955, a eleição do governo desenvolvimentista de Juscelino Kubitschek. Nada que se compare aos personagens e dores do Brasil neste verão de 2016, após duas décadas e meia de pensamento único e do Fim da História, hoje em ritmo pós-verdade e a flexibilização de princípios e direitos dos povos e países às conveniências aos poderosos da globalização.
A renuncia como resposta a valores como decoro, honra, dignidade, faz parte da lógica de governos que se apoiam em alguma forma de legitimidade popular, que aceitam a noção de que não é possível administrar um país sem o respaldo de uma parcela da sociedade, e a concordância de outra parte. Isso explica porque até Richard Nixon, um presidente cuja falta de escrúpulos no exercício do poder dispensa comentários, preferiu renunciar quando a Suprema Corte chegou perto de fitas que provavam seu envolvimento no escândalo Watergate. Nixon deixou a Casa Branca com os dedos em sinal de paz e amor e um sorriso nos lábios — num gesto óbvio de reconciliação, mesmo marota, com a população de seu país.
A mudança neste código de conduta comum às democracias foi a grande alteração de fundo produzida, no Brasil, pelo golpe de 31 de agosto. Como era de se esperar, a partir daí os beneficiários do estado de exceção não se julgam na obrigação de prestar contas ao povo. Possuem um tipo de certeza alimentada pela auto suficiência, o que torna difícil encontrar uma saída civilizada para seus atos. Podem renunciar para salvar a própria pele — comportamento que depende, acima de tudo, da capacidade da população se mobilizar em defesa de direitos e conquistas, processo que pode levar ao abandono por parte de amigos e protetores.
Só consigo ver a luta pela recuperação da democracia brasileira como um processo árduo e difícil, que pode levar um período muito mais longo do que os quinze dias úteis – contando a segunda-feira, 12 – que restam até 31 de dezembro. Seu resultado não pode depender da boa vontade de um governante.
Isso acontece também por um bom número de razões. A primeira é que Temer não é, a rigor, o dono de seu mandato mas o instrumento daquele conjunto de forças que articulou um golpe parlamentar contra um governo indesejável. Não pode bater a porta e ir embora, num ato repentino de prima donna de ópera. Embora tenha assumido o Planalto na esperança de ficar até 2018, e só os bajuladores incorrigíveis do jornalismo gostavam de especular sobre uma reeleição sempre inviável, os compromissos que assumiu implicam em mudanças que se projetam por várias décadas, quem sabe mais de um século no futuro dos brasileiros. Valem trilhões de dólares para as partes beneficiadas, implicam em mudanças relevantes na diplomacia mundial e na distribuição de riquezas do planeta, num país que abriga um PIB comparável ao da Itália e ao da Inglaterra, com um poder de influenciar o conjunto da América Latina.
O segundo ponto é político-eleitoral. Os adversários tradicionais do projeto Lula-Dilma não conseguiram construir uma alternativa realista para disputar a presidência com chances de vitória. A renúncia de Temer, desse ponto de vista, teria boas chances de se encerrar pelo retorno das forças que governaram o país entre 2003 e 2016. No Data Folha de hoje, Lula é o primeiro colocado num eventual primeiro turno em 2018. Não é pouca coisa, considerando o massacre permanente a sua candidatura.
Isso quer dizer que mesmo contando com uma maioria de 63%, a luta por diretas pode envolver uma disputa prolongada. Do ponto de vista de quem faz a agenda do Planalto e tem os meios para que seja executada, a prioridade é garantir a sobrevivência de Temer de qualquer maneira até o fatídico 31 de dezembro. Depois disso, se não houver jeito, será preciso processar sua substituição, sempre num ambiente de segurança máxima, sem arestas nem pequenos desvios que possam abrir caminho a manifestação indesejável do povo. Este cuidado que já chegou a maioria do STF, como se viu no esforço para preservar os poderes de Renan Calheiros para conduzir a votação de medidas essenciais – a começar pela PEC 55. Do ponto de vista dos vitoriosos de 31 de agosto, esta é a agenda que importa. Quem estiver com ela irá ouvir juras de amor eterno e e garantias de bônus por desempenho.