Se antes bastava se cercar no próprio feudo e a guerra não chegaria ali, agora, para funcionar para mim, precisa funcionar para todo mundo
No último dia 22, no meio da pandemia de coronavírus, uma senhora de 90 anos faleceu na Bélgica após ter recusado o ventilador mecânico para ceder o equipamento em favor de alguém mais jovem. “Guarde para alguém mais jovem. Eu vivi uma boa vida” foi o que ela disse dias antes de falecer.
O inimigo dessa vez é invisível e implacável: fez os líderes das grandes nações parecem crianças assustadas, fez o Papa sozinho e cabisbaixo perdoar os nossos pecados, fez judeus e muçulmanos rezarem juntos.
As nossas tradicionais armaduras falharam. De nada adiantou o poderio militar nuclear dos mísseis ou os inalcançáveis imóveis de luxo do Central Park: o gramado agora está cheio de tendas de hospital de campanha. Nossos planos de saúde caros não foram suficientes para tirar o receio da falta de equipamentos de nossas cabeças e tampouco nossos celulares e televisões sofisticados foram capazes de entreter no meio dessa solidão sentida e vivenciada por todos.
Sentimo-nos amedrontados, perdidos, sozinhos. E aí, diante de algo que não sabemos como nem quando vai acabar, fomos obrigados a ajoelhar. E para ajoelhar, todos nós fomos obrigados a aprender que é necessário sair dos nossos tronos, das nossas bolhas, das nossas coberturas, das nossas realidades e aproximar a cabeça do chão, frágeis e despidos.
Quando a gente se abaixou, acabamos esbarrando as cabeças uns nos outros e o milagre começou a acontecer. Começamos a perceber que a doença que mata a minha mãe também mata a mãe de quem mora do outro lado do mundo. Vimos que o mesmo problema que quebra o meu negócio desemprega o meu funcionário mais simples. Passamos a enxergar a importância de profissões que muitas vezes considerávamos pouco importantes ou dispensáveis.
Constatamos que o medicamento que me falta também faltará para quem mora na favela. Sentimos que a mesma solidão que se abate sobre mim angustia o outro que tem nome, cor, origem e religião diferentes dos meus.
Despedaçados perante nossos medos mais ocultos, enfim fomos obrigados a admitir aquilo que já sabíamos mas não queríamos aceitar: somos todos iguais. No final das contas, após todo o dinheiro, todo o status, todos os privilégios, encolhemo-nos de medo das mesmas coisas e sentimos uma compaixão comum diante dos números que crescem, seja na Itália, nos Estados Unidos ou na nossa cidade.
Se antes bastava se cercar no próprio feudo e a guerra não chegaria ali, agora, para funcionar para mim, precisa funcionar para todo mundo. Para que eu seja protegido, preciso proteger os outros. A conta do nosso egoísmo chegou, cara e sem nenhum desconto.
Mas com o milagre, percebemos que essa conta pode ser paga de outra forma. Dito e repetido, não são hidroxicloroquina ou cloroquina que encerrarão esses tempos obscuros. Já descobrimos a cura e ela se chama amor. Pode parecer piegas, não é mesmo? Mas a verdade é que chegamos no ponto decisivo, na curva da inflexão na qual ou nós mudamos a maneira de convivermos enquanto sociedade ou estaremos sempre à mercê de nosso próprio egoísmo disfarçado de vírus, guerras, crises econômicas ou governantes inescrupulosos.