Primeiro, veio a febre alta, que não passava. Depois, surgiram manchas na ponta dos pés. Como é médica, Caroline Oliveira, 34, desconfiou ao ver o quadro do filho Miguel, de um ano e meio.
Um dia antes, seu marido apresentou sintomas de Covid-19, mas a situação do filho, que começou a ter febre em seguida, parecia diferente.
“Eu já tinha visto um artigo sobre casos de uma síndrome inflamatória rara na Itália. Fiquei preocupada, mas pensei que era coisa da minha cabeça”, afirma. “Mas logo as manchas na pele pioraram.”
Assustada, Caroline fez duas visitas a médicos com o filho –em uma delas, os exames tinham poucas alterações, e ela foi orientada a voltar para casa e monitorar a evolução.
“Mas a febre ainda estava altíssima e as manchas começaram a ficar arroxeadas. No dia seguinte, vi que ele estava mal, sonolento e que começou a baixar o nível de consciência. Entrei em desespero.”
Em nova ida ao hospital, Miguel foi internado e transferido para a UTI. O quadro foi diagnosticado como síndrome inflamatória multissistêmica pediátrica (Sim-P), doença que vem sendo investigada por uma possível associação com o novo coronavírus.
Embora a maioria das crianças e adolescentes tenha quadros leves de Covid-19, uma parte pequena vem chamando a atenção por registros de um quadro considerado grave.
Ao todo, o país já registrou ao menos 142 casos da chamada Sim-P, com nove mortes, segundo balanço feito pela reportagem com base em dados de secretarias estaduais de Saúde e do Ministério da Saúde. Os estados de Santa Catarina, Roraima, Rondônia, Amapá, Mato Grosso do Sul, Sergipe e Alagoas não responderam.
Os casos foram registrados em 15 estados e no Distrito Federal, que também têm outros dez casos em investigação.
Oficialmente, o ministério confirma 117 casos até 8 de agosto, em oito estados e no DF. A notificação, porém, não é obrigatória em nível federal, o que tem feito secretarias estaduais de Saúde reforçarem o monitoramento.
Para especialistas, o total de casos da síndrome é baixo se comparado aos números da Covid-19, mas a doença chama a atenção pela gravidade, por ser algo novo e pela possível subnotificação.
A situação levou a SBP (Sociedade Brasileira de Pediatria) a fazer um alerta em maio. Diante do aumento nos relatos, um novo documento foi elaborado pelo Ministério da Saúde em 20 de julho, orientando a identificação.
Os registros apontam para um quadro que começa com febre alta e contínua, com possibilidade de dor abdominal, vômito e diarreia, além de conjuntivite e aparecimento de erupções e inflamações na pele. Quando se agrava, pode comprometer os órgãos.
“A partir daí caminhamos para um quadro multissistêmico, em que há o envolvimento de muitos órgãos. Há alterações cardíacas, alterações respiratórias, no sangue, na pele, nos olhos e no sistema nervoso”, explica Marco Aurélio Sáfadi, presidente do departamento de infectologia da SBP. Segundo ele, a intensidade e o quadro pode variar.
E o que explica a relação da síndrome com a Covid-19? Segundo especialistas e o Ministério da Saúde, a maioria das crianças diagnosticadas tem resultado negativo em testes de RT-PCR, que avaliam infecção aguda para o novo coronavírus, mas positivo em testes de anticorpos, o que levanta a hipótese de uma manifestação tardia dos sintomas da Sim-P.
Há também registros de casos na síndrome após os primeiros sintomas de Covid-19. “Tal achado sustenta a hipótese de associação entre a Sim-P e a Covid-19, porém essa relação causal ainda não foi estabelecida e permanece em investigação”, diz nota técnica do ministério. A pasta vem tratando o caso como uma síndrome “temporalmente” ligada ao novo coronavírus.
“Todos os indícios nos sugerem até o momento que isso esteja ligado”, diz Marcelo Otsuka, coordenador do Comitê de Pediatria da SBP.
Os sintoma da Sim-P são parecidos com o de outra síndrome: a de Kawasaki, uma doença inflamatória autoimune e rara. Segundo Otsuka, uma das diferenças é que a nova doença tem atingido crianças com média de idade de nove anos, e há casos registrados também entre crianças menores e adolescentes, enquanto a Kawasaki atinge aquelas abaixo de três anos.
“Outro ponto é que a Sim-P tem indicado uma doença mais grave, que pode inclusive levar à falência de órgãos”, alerta. Ele diz, no entanto, ter acompanhado casos com boa recuperação até agora.
De acordo com Sáfadi, a síndrome pode ser tratável se for diagnosticada cedo, segundo apontam dados de acompanhamento dos pacientes.
Foi o que ocorreu com o pequeno Miguel. Ao todo, o menino ficou nove dias na UTI.
“A parte cardíaca dele já estava toda comprometida. Ele tinha uma dilatação de artéria coronária e o coração estava bem inflamado, com uma lesão cardíaca bem severa”, conta a mãe, Caroline. “Aos poucos, os órgãos dele foram voltando”, relata ela, que ficou ao lado do filho enquanto também se recuperava da Covid.
De acordo com especialistas, a média de internação de pacientes com a Sim-P é de até dez dias. Após a alta, há necessidade de acompanhamento ambulatorial, com reumatologista e exames. Em geral, o tratamento é feito com imunoglobulina e corticoides.
Ainda não se sabe por que algumas crianças desenvolvem o quadro quando a maioria tem sintomas leves.
No Pará, pesquisadores do Instituto Evandro Chagas avaliaram 11 pacientes de 7 meses a 11 anos de idade que tiveram o diagnóstico da Covid-19 e desenvolveram a síndrome. O tempo entre a exposição ao vírus e a ocorrência da manifestação variou de 7 a 60 dias.
Para o grupo, o fato de a maioria ter anticorpos e não infecção aguda pode sugerir o “desenvolvimento errático de imunidade adquirida”.
Segundo os especialistas, é preciso que pais e profissionais de saúde estejam alertas para os sintomas. Para Otsuka, os casos também mostram que são necessários mais estudos sobre o novo coronavírus.
Questionadas, as secretarias estaduais de Saúde dizem que têm emitido orientações. Dos 19 estados e o DF que responderam à reportagem, seis disseram que não registraram casos da síndrome (Acre, Amazonas, Mato Grosso, Rio Grande do Sul, Goiás e Tocantins).
Já o Ceará apresentou o maior número de registros: 41 até agora. Em seguida vêm o Rio de Janeiro, com 22, e São Paulo, com 18 casos. Em nota, o estado atribui o maior número de casos a ações de testagem em massa e vigilância.
“Todos os núcleos de vigilância hospitalar estão cientes da necessidade de vigilância dessa síndrome e se comunicam constantemente com o Centro de Informações Estratégicas”, afirmou.
As nove mortes identificadas e investigadas ocorreram em São Paulo, no Ceará, no Rio de Janeiro, no Pará e na Bahia.
Para Caroline Oliveira, mãe de Miguel, a atenção da equipe de saúde foi fundamental para a recuperação do filho.
“Vou ser eternamente grata. Se tivesse esperado um pouco mais, ele poderia ter sequelas para o resto da vida.”