Uma das festas mais tradicionais do calendário de eventos do verão – e do ano inteiro – de Salvador, a Lavagem do Bonfim, que tem seu clímax na Basílica Santuário do Senhor do Bonfim, quando o adro da igreja é lavado com água de cheiro por um conjunto de baianas, ganhou corpo exatamente com a proibição da Arquidiocese de Salvador. “Todos nós, inclusive nós jornalistas, vamos falar o tempo todo amanhã na Festa do Bonfim. Quando na verdade a festa é domingo. O grande dia do Nosso Senhor do Bonfim. O segundo domingo depois da epifania, depois da Festa de Reis. A Lavagem, na verdade, é uma festa que a Igreja Católica nunca quis. A Lavagem acontece porque a Igreja proibiu a Lavagem”, explica a jornalista Cleidiana Ramos, que pesquisa o ciclo de festas populares da cidade e apresentou em dezembro a tese de doutorado em Antropologia intitulada ”Festa de Verão em Salvador: Um estudo antropológico a partir do acervo documental do jornal A Tarde”, pela Universidade Federal da Bahia. O veto à entrada das baianas na igreja aconteceu em 1889 – a história não é segredo, mas é desconhecida por parte dos participantes da festa. Desde 2013, a Igreja Católica instituiu um novo rito, a Lavagem do Corpo e da Alma, que inclui um grupo de penitentes abrindo o cortejo. Cleidiana salienta que a mudança acontece logo após a festa ser incluída no Livro de Registro das Celebrações pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). “Porque o próprio órgão reconhece que uma festa é uma coisa dinâmica, e ela não vai ficar congelada. Então você tem um plano de manejo, mais ou menos o que você prevê onde essa festa caminha e também para que você não perca determinadas coisas que são cruciais”, cita a jornalista, que observa um tensionamento com a alteração: um evento religioso festivo que passa a ter um “elemento novo” que retoma o tom sacrificial das homenagens a Jesus Cristo.
“Imagine, uma lavagem é uma coisa lúdica. Se você vai lavar sua casa ou faz um movimento vai pintar sua casa, o pessoal faz feijoada, é muito comum nos bairros periféricos, e a pintura da casa vira uma grande festa. No final está todo mundo bebendo, comendo a feijoada, e a gente nem sabe como a pintura vai continuar. Então é mais ou menos isso que acontece dentro da igreja”, pontua, para completar: “Como o professor Ordep Serra adora frisar: é o único culto ao crucificado no mundo que você não tem tristeza. Todos os cultos ao Jesus crucificado são tristes”. No lado dos cultos de matriz africana, que sustentam boa parte da celebração, Cleidiana também menciona contradições que compõem o caldeirão que é a Festa do Bonfim. “Ao mesmo tempo quando a gente fala: ‘Ah, a Lavagem repete as Águas de Oxalá’. Não necessariamente. Da mesma forma que a gente pode falar aqui de um catolicismo com inserção, ou melhor, um catolicismo remodelado pela devoção do povo, ou seja, o povo se apropria do catolicismo e remodela do seu jeito, a gente pode falar de um candomblé popular”. A pesquisadora salienta que há nuances, de forma que não se pode afirmar que a Lavagem é a transposição da cerimônia candomblecista para o pátio da igreja. “Eu não gosto muito dessa palavra – porque é difícil a gente encontrar palavras – mas a Lavagem, digamos assim, ‘imita’ o rito. Não necessariamente é o rito, porque não tem sentido: imagine Oxalá levado… e Oxalá tem algumas interdições. Uma das interdições de Oxalufã, que é a versão mais idosa de Oxalá, é o álcool, mas bebe-se no Bonfim”, observa. Com uma parte sagrada multifacetada e uma parte profana para todos os gostos ao longo do trajeto entre a Basílica de Nossa Senhora da Conceição da Praia e o Bonfim, a Lavagem tem “festas dentro da festa”. “Então ali naquele meio você tem quantas festas do Bonfim? Tem uma festa na estação [ferroviária] da Calçada. As pessoas vão para a festa da estação da Calçada. Mas o que elas dizem em casa? Eu fui para a Lavagem do Bonfim. Tem gente que só vai para a festa do Bonfim no Museu du Ritmo. E as pessoas dizem: ‘eu estava no Bonfim’. Foi na Enxaguada du Bonfim, mas foi para a festa do Bonfim. Mesmo que nunca tenha pisado da Colina Sagrada”, diverte-se.
“Imagine, uma lavagem é uma coisa lúdica. Se você vai lavar sua casa ou faz um movimento vai pintar sua casa, o pessoal faz feijoada, é muito comum nos bairros periféricos, e a pintura da casa vira uma grande festa. No final está todo mundo bebendo, comendo a feijoada, e a gente nem sabe como a pintura vai continuar. Então é mais ou menos isso que acontece dentro da igreja”, pontua, para completar: “Como o professor Ordep Serra adora frisar: é o único culto ao crucificado no mundo que você não tem tristeza. Todos os cultos ao Jesus crucificado são tristes”. No lado dos cultos de matriz africana, que sustentam boa parte da celebração, Cleidiana também menciona contradições que compõem o caldeirão que é a Festa do Bonfim. “Ao mesmo tempo quando a gente fala: ‘Ah, a Lavagem repete as Águas de Oxalá’. Não necessariamente. Da mesma forma que a gente pode falar aqui de um catolicismo com inserção, ou melhor, um catolicismo remodelado pela devoção do povo, ou seja, o povo se apropria do catolicismo e remodela do seu jeito, a gente pode falar de um candomblé popular”. A pesquisadora salienta que há nuances, de forma que não se pode afirmar que a Lavagem é a transposição da cerimônia candomblecista para o pátio da igreja. “Eu não gosto muito dessa palavra – porque é difícil a gente encontrar palavras – mas a Lavagem, digamos assim, ‘imita’ o rito. Não necessariamente é o rito, porque não tem sentido: imagine Oxalá levado… e Oxalá tem algumas interdições. Uma das interdições de Oxalufã, que é a versão mais idosa de Oxalá, é o álcool, mas bebe-se no Bonfim”, observa. Com uma parte sagrada multifacetada e uma parte profana para todos os gostos ao longo do trajeto entre a Basílica de Nossa Senhora da Conceição da Praia e o Bonfim, a Lavagem tem “festas dentro da festa”. “Então ali naquele meio você tem quantas festas do Bonfim? Tem uma festa na estação [ferroviária] da Calçada. As pessoas vão para a festa da estação da Calçada. Mas o que elas dizem em casa? Eu fui para a Lavagem do Bonfim. Tem gente que só vai para a festa do Bonfim no Museu du Ritmo. E as pessoas dizem: ‘eu estava no Bonfim’. Foi na Enxaguada du Bonfim, mas foi para a festa do Bonfim. Mesmo que nunca tenha pisado da Colina Sagrada”, diverte-se.