Hillary Clinton perdeu a chance de vencer a eleição para a Casa Branca no início de setembro, durante um jantar de coleta de fundos, quando se referiu aos eleitores do adversário Donald Trump nos seguintes termos:
“Racistas, sexistas, homofóbicos, xenófobos, islamofóbicos… há de tudo”, enumerou a candidata, em referência às opiniões e atitudes dos eleitores que tencionam votar no seu adversário republicano. “Generalizando de uma forma um tanto ou quanto grosseira, podíamos juntar metade dos apoiantes de Donald Trump no que eu chamo um grupo deplorável”.
A contagem dos votos que deram a vitória a Trump mostra o grotesco desvio de foco político na campanha democrata. Hillary estava corretíssima em condenar o racismo, a xenofobia, a homofobia do adversário. Mas não tinha o direito de referir-se a eleitores seduzidos pela pregação demagógica do adversário como “grupo deplorável” sem dar uma resposta adequada ao problema real que seria visto nas urnas. Trump conseguiu a vitória em locais e regiões onde questão materiais moviam a atenção do eleitorado: a falta de empregos, a desindustrialização, a queda de oportunidades, o empobrecimento. Nada muito diferente do que se vê em várias partes da Europa, a começar pela França e o Front National.
Sem dar uma resposta efetiva a essas questões, denunciadas sistematicamente por estudiosos e pelo movimento operário há duas décadas, Hillary Clinton travou uma luta à margem dos impasses mais profundos que envolvem os dramas das grandes maiorias da sociedade norte-americana.
A incompreensão do processo em curso levou a candidatura democrata a definir, como “populismo”, toda tentativa de dar respostas aos mais pobres e menos protegidos. Era uma óbvia tentativa de dar a impressão de que tudo estava bem e desqualificar toda crítica.
Se era necessário denunciar a demagogia insanável das ideias do adversário, também era preciso admitir que havia um descontentamento com base real.
O combate ao racismo, a defesa dos direitos da mulher e a denuncia de toda forma de opressão e preconceito é uma postura que honra a civilização do século XXI e só merece aplauso. Não pode, contudo, encobrir ou minimizar questões que dizem respeito a interesses de classe.
Os votos que derrotaram Hillary saíram de tradicionais regiões de trabalhadores historicamente ligados ao Partido Democrata, a espera de uma resposta igualmente essencial para os dramas da vida real. A informação de que, pela primeira vez na história, os Democratas tinham mais votos entre cidadãos com diploma universitário, mas perdiam a maioria entre aqueles com menor educação formal, é um sinal que diz tudo. Significa que os mais educados — grupo que reúne aqueles que tem mais oportunidades na vida — tendiam a estar mais satisfeitos com a candidatura democrata.
Considerando as catastróficas consequências da vitória de Trump, é realmente deplorável que isso tenha ocorrido. Seria muito ingênuo, contudo, imaginar que uma tragédia dessa profundidade tenha origem numa estratégia errada de campanha, num tropeço da equipe de marketing, numa declaração infeliz. Envolve um processo mais profundo e duradouro, porém. Faltou reconhecer que a regressão social dos últimos anos merecia respostas efetivas para os principais interessados. Era preciso entender um alerta luminoso. Mais do que uma corriqueira disputa em eleições primárias, o desempenho de Bernie Sanders na disputa pela candidatura era um sinal que merecia atenção e cuidado sobre a insatisfação profunda entre eleitores democratas, em particular a juventude.
Historicamente identificado com o progresso social marcado pelo New Deal de Franklin Roosevelt, cujas consequências se prolongaram por quase meio século, a direitização do Partido Democrata é um processo iniciado a partir da década de 1980, quando Ronald Reagan derrotou Jimmy Carter e transformou a Casa Branca no QG de uma contra-revolução conservadora em escala nacional e mundial. A principal herança de Reagan foi a destruição de uma hegemonia de 30 anos dos democratas no Congresso, que permitiu a defesa de medidas de bem-estar e dos interesses dos mais pobres.
Vitorioso após três mandatos republicanos sucessivos, Bill Clinton fez uma gestão de admirável crescimento econômico. Também promoveu pequenas reformas estruturais, que ajudaram a transformar a economia dos EUA numa sucursal de seus cassinos financeiros, origem do colapso de 2008/2009. Clinton promoveu redução de direitos dos assalariados e assinou acordos comerciais internacionais que envolviam perda de emprego, a desindustrialização, que se transformaram num alvo permanente para a campanha de Trump.
Embora a economia norte-americana tenha demonstrado uma relativa recuperação em anos recentes, já possuía um DNA que dificultava a distribuição de renda e a criação de bons empregos.
Cedo ou tarde, a conta iria chegar. Chegou.