Recomendo a leitura de Apenas um Passo, do escritor baiano Alexandre Araújo, em primeiro lugar à turma LGBT, mas também à galera heterossexual, pois além de muito bem escrito, com roteiro interessante e leitura agradável, serve de alerta à primeira turma para não ser a próxima vítima e de informação à segunda galera sobre como funciona uma parte da subcultura gay de Salvador – muito semelhante ao que acontece no resto do Brasil e do mundo moderno. São 20 capítulos curtos e bem interconectados, onde, parece que autobiograficamente(?), Alexandre Araújo, dá logo no início o mote de seu romance: “Não é justo que eu faça parte de uma guerra entre Deus e o diabo e já nasça pecador, desmerecedor, só por ser quem eu sou. .. Será que é meu destino a solidão de uma escolha que nunca fiz? será que terminar a vida sozinho é o preço por nascer gay?”
Das pouquíssimas referências à homossexualidade que eu recordo de minha longínqua adolescência, além de um professor de História dizer que “o homossexualismo foi o culpado pela queda do Império Romano”…, uma perversa fake news há muito desmascarada, ouvi não sei de quem que o destino de todo “pederasta” era viver abandonado, numa pensão de 5ª categoria na mais abjeta beira de estrada. Jovem gay algum jamais almejaria viver tamanha desgraça!
Malgrado tão abominável profecia, felizmente, aos 78 anos, mais da metade de minha vida assumidamente líder do Grupo Gay da Bahia, escapei dessa citada fake maldição: usufruo de minha aposentadoria como professor universitário, que não é como a de um juiz ou militar, mas permite-me viajar todo ano para o Bello Mondo, minha casa é bem mais confortável que um quarto de pensão, tenho bom plano de saúde e duas filhas e três netas que me amam de paixão. Por isso recomendo às mais novinhas: poupem para garantir um bom futuro!
Um dos homossexuais mais badalados na Belle Époque, Marcel Proust (1871-1922), mona afetadíssima das tais que na Bahia dizem que “morre tesa, mas não perde a pose” …, e que embora tenha incluído diversas personagens homoeróticas em seus romances, no fundo era do tipo que os psicanalistas chamam de “egodistônicos”, mona mal resolvida, com falta de sintonia entre seu desejo homo e sua teatral vivência hétero. Cito livremente um seu pensamento, acho que do livro Sodoma e Gomorra: “raça maldita, cujo nobre sentimento amoroso, que faz a felicidade dos casais ‘normais’, para si é objeto de condenação e sofrimento!” Exatamente o que disse o escritor Alexandre Araújo no início deste seu quarto livro.
Ao ler com muito prazer, de uma só assentada, Apenas um passo, senti essa mesma sua sensação em diversos episódios, encontros e desencontros, busca incansável de prazer homoerótico e eventual afeição, a preocupação latejante da boa aparência, o recurso aos drinks como combustível e lenitivo para o vazio da solidão. Apesar de alguns poucos amigos do peito em quem se escorar na hora das crises, o sentir-se incompleto, sempre em busca de uma idealizada cara metade, permeia grande parte dos capítulos do livro. E do alto de minha cátedra de “tia velha”, “maricona escolada”, deixo neste despretensioso prefácio, duas lições de vida para os leitores lgbt para não terminarem sua vida como o infeliz Roger, a biba mais alegre e “suportativa” do pedaço, que após um delicioso encontro através do Grindr, é massacrado com 11 facadas (capítulo 15 e seguintes).
1ª lição: vamos parar com essa obsessão imposta pelos heteronormativos donos do poder, que só podemos ser felizes a dois. Mentira! Como dizia meu velho pai, anarquista na juventude, 10 filhos, “temos de aprender a ser feliz sozinho, se tiver alguém, vem de lambuja, lucro…” Essa eterna procura da outra metade é falaciosa, promessa de amor eterno é ilusão, fidelidade total é devaneio. Leo, 39 anos, professor, o protagonista dessa história, após sérias frustrações amorosas, fossas homéricas, no último capítulo aceita recomeçar seu maravilhoso romance com o belo Higor, selando com um par de alianças essa venturosa nova fase de sua vida. Felicidade aos pombinhos!
2ª lição de vida da titia calejada em rangar bofonecas: todo cuidado é pouco! Sobretudo em tempos bicudos em que vivemos, onde a vida não vale nada! E vida de viado, menos ainda: todos os anos, de 200 a 400 lgbt têm morte violenta, vítimas da homotransfobia estrutural. Crimes de ódio! Metade dos assassinatos homotransfóbicos do mundo, ocorrem no Brasil. 257 mortes no ano passado, uma a cada 34 horas. Insisto, todo cuidado é pouco. Consulte no Googe “Gay vivo não dorme com o inimigo”.
Como disse no início, Apenas um Passo serve também como valioso guia para leitores heterossexuais que counhecem pouco esse mundinho, por revelar os meandros da chamada subcultura lgbt contemporânea, que em Salvador, repete mutatis mutandis, padrões muito semelhantes ao que acontece em NY, SP, Feira de Santana e Lauro de Freitas, estas duas últimas, terras do Autor… Desfilam aqui drag queens, bares e boites gays e de simpatizantes, academias, bibas andando de bike, novos métodos de prevenção de HIV, as vezes transando com o vendedor no provador de roupa em loja de shopping, monas fechativas, festinhas animadas e cafés descolados, casos homoafetivos, assassinato do melhor amigo. Tal diversidade de personagens, espaços e situações funciona como uma espécie de guia etnográfico para quem não é do ambiente, flashs do cenário da diversificada flora e fauna LGBTQIAPN+, como grafa Alexandre Araújo, comunidade à qual dedica seu livro. Muito obrigado por nos revelar tão realisticamente essa guerra entre Deus e o Diabo com a gente no meio.
Boa leitura!
Resenha de Luiz Mott, Professor Titular de Antropologia Ap. da UFBa e Fundador do Grupo Gay da Bahia