Ser obrigado a ficar em casa por tempo indeterminado, não ter mais o direito de ir e vir ou mesmo tentar viajar para se proteger em um lugar mais seguro, temer um inimigo que está a espreita e viver com medo da morte.
O cenário acima define como a sociedade na Europa vivia durante a Segunda Guerra Mundial, conflito que se encerrava no continente há exatos 75 anos, quando em 8 de maio de 1945 os exércitos aliados tomaram Berlim e decretaram a derrota final do regime nazista na Alemanha.
A data será lembrada de forma mais virtual do que com grandes comemorações na Alemanha, como estava previsto antes de a pandemia eclodir e a covid-19 matar centenas de milhares no mundo todo. Mas se o coronavírus impede as celebrações, ao mesmo tempo tem trazido a Segunda Guerra de forma sistemática à memória dos europeus. Líderes como, a própria alemã Angela Merkel, evocaram os esforços do conflito mais de uma vez para falar do enfrentamento à pandemia.
Mas se boa parte da população mundial se identifica com a descrição do início deste texto, este fenômeno tem muito mais a ver com o discurso acerca da pandemia do que, propriamente, com semelhanças sociais ou políticas com o período das grandes guerras mundiais.
A historiadora Caroline Silveira Bauer, professora de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e pesquisadora do Laboratório de Usos Políticos do Passado, reforça e alerta: não se pode comparar o momento de agora com o vivido no século passado durante alguma das guerras.
Para ela, a maior semelhança entre os dois momentos históricos é se tratar de “situações absolutamente distintas” do que se pode chamar normalidade.
“A única coisa em que os esforços se aproximam é no enfrentamento a uma situação incomum, atípica do ponto de vista da política — ainda que a guerra possa ser vista como uma continuidade da política, e as consequências da pandemia explicitem também os limites das políticas públicas.”’A única coisa em que os esforços se aproximam é no enfrentamento a uma situação incomum, atípica do ponto de vista da política.’
A historiadora chama a atenção para o uso de termos como “guerra”, “hospital de campanha’, “inimigo”, “linha de frente”, “luta”.“Acredito que a ‘retórica da guerra’ esteja sendo utilizada em função do esforço mobilizado para o enfrentamento à pandemia”, diz Caroline.
“Esse é o discurso da intimidação, destacando o perigo do que pode acontecer”, comenta também Vladimir Feijó, professor de Relações Internacionais do IBMEC de Minas Gerais. Para ele, esta evocação do período da Segunda Guerra mexe com a sensação de medo e do isolamento provocado pela pandemia.
Alianças e críticas
Para o analista internacional, no entanto, os períodos de guerra assim como o da pandemia se aproximam no aspecto da inevitável formação de alianças para decidir em conjunto quais as melhores soluções para a crise e como se ajudar em momentos de vulnerabilidade.
Na Europa, a União Europeia segue forte, enquanto na América Latina diversos países conversaram logo no início da crise para definir as estratégias de combate à doença. O Brasil não participou desta reunião.
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“Forma-se um conjunto de alianças que competem entre si, cada qual querendo ser uma boa referência no mundo”, explica o especialista.
Em conjunto, os países definem se a estratégia para controlar o vírus e os efeitos da pandemia devem ser a nível interno, nacional, ou se a resposta deve ser coletiva, com transferência de poderes entre os Estados, diz.
Com esse cenário de união na Europa, os Estados Unidos se tornam os maiores contestadores da pandemia, jogando a culpa e a responsabilidade na China, contestando as decisões da OMS e apontando o dedo para outras nações, ainda que eles sejam o epicentro global da doença e tenham mais de 1 milhão de infectados.
A China, berço da doença, enfatiza que neste momento a melhor saída é apoiar a OMS, diz Feijó, e a União Europeia faz frente à liderança tradicional dos EUA nos momentos de crise.
Se na guerra os grupos de aliados compartilhavam armamento, com a pandemia são compartilhados materiais de pesquisa, resultados, recursos e os equipamentos de proteção básica, como máscaras e medicamentos.
Nacionalismo e violação da lei
Até o final do ano passado e começo de 2020, a Europa se preocupava com a ascensão da ultradireita em diversos governos e a popularização de discursos marcados pelo ódio, racismo, xenofobia e machismo.
Esses sentimentos são inflados por crises econômicas e políticas, insatisfação com governos ou dificuldades dentro de um país, e na Europa, a direita encontrou terreno fértil depois da crise de 2008 e do insucesso das políticas de austeridade, explica Carolina.