O principal desafio é construir poder político a partir do território em que as pessoas vivem, por meio da mobilização da cidadania. O objetivo maior é que as pessoas se reapropriem do poder de decidir sobre a própria vida, retomem a gestão do que é público, invistam na construção de bens comuns, debatam um novo projeto de sociedade, mais justa, mais solidária, mais cooperativa, com governos preocupados com a qualidade de vida das pessoas, não em facilitar para grandes empresas suas oportunidades de negócios, como é agora.
Estamos a catorze meses das eleições municipais. Elas serão muito importantes para o futuro do país, pois podem tanto ratificar esta onda autoritária como abrir espaço para a inovação democrática. E as campanhas eleitorais começam agora.
É justamente nestes momentos críticos que a correlação de forças se move. O corte de orçamento para as políticas sociais já se faz sentir. A economia e o emprego não melhoram. As pesquisas de opinião já deslocaram as prioridades da população, que coloca hoje saúde e educação entre suas principais preocupações. O processo de campanha eleitoral e eleição que se inicia abre possibilidades de fortalecimento do campo político da defesa da democracia e dos direitos humanos.
Estas eleições não podem ser mais do mesmo. O principal desafio é construir poder político a partir do território em que as pessoas vivem, por meio da mobilização da cidadania. O objetivo maior é que as pessoas se reapropriem do poder de decidir sobre a própria vida, retomem a gestão do que é público, invistam na construção de bens comuns, debatam um novo projeto de sociedade, mais justa, mais solidária, mais cooperativa, com governos preocupados com a qualidade de vida das pessoas, não em facilitar para grandes empresas suas oportunidades de negócios, como é agora.
E como fazer isso?
Se tomarmos como referência as propostas do movimento França Insubmissa, que se prepara para participar das eleições municipais francesas de 2020, trata-se de promover uma verdadeira revolução na forma de fazer política.1 A estratégia é atuar nos bairros, principalmente naqueles mais pobres, envolvendo os animadores e animadoras das lutas locais, sociais e ambientais; os militantes das associações, dos sindicatos, das igrejas; e todos aqueles que apoiem esse processo de construção de um programa de proposições concretas para enfrentar os problemas do bairro e melhorar a vida de seus moradores.
Não se trata, em nosso caso, de um programa partidário, mas da construção de uma frente de defesa de direitos que pode abrigar vários partidos e mesmo quem não se identifica com partido algum.
A construção de um poder político de baixo para cima leva seus militantes a bater de porta em porta, recolher as demandas de cada bairro, promover assembleias de quarteirão, para que o programa político seja feito nessas reuniões de moradores locais, expressando suas demandas e necessidades, e articulando as distintas demandas em um programa mais amplo, que contemple a todos, criando a possibilidade de construção de uma federação popular.
A refundação da política (a política com novos fundamentos) exige inovações como os ateliês legislativos, reuniões populares em que se formulam projetos de lei que abrem espaço para o envolvimento dos moradores locais; os referendos locais, consultas para a consolidação de prioridades; ações de desobediência civil em defesa, por exemplo, do meio ambiente; iniciativas que ampliam os espaços de coelaboração do programa eleitoral, de mobilização cidadã, e da criação de listas de candidatos comprometidos com a construção de contrapoderes da cidadania no plano local.
As candidatas e os candidatos dessa frente popular, dessa federação de organizações populares, também podem inovar, como é o caso dos mandatos coletivos que se materializaram nas bancadas ativistas de vereadoras e vereadores em várias cidades do país, na publicação na internet de todas as suas posições e da prestação de contas financeira do mandato etc. A bancada ativista tem um representante eleito que se compromete a atuar em um coletivo que toma as decisões.
As eleições municipais de 2020 são o momento em que a cidadania pode recuperar o poder de decidir sobre a qualidade de vida em seu território. Recuperar o poder para garantir coisas concretas. Por exemplo, que as crianças, nas escolas, tenham uma alimentação farta, se alimentem de produtos orgânicos, sem agrotóxicos, e que esses alimentos sejam provenientes de circuitos curtos de produção, de produtores locais, como é o cinturão hortifrutigranjeiro que existe em todo município. Ou que a mobilidade urbana se baseie cada vez mais no transporte coletivo, nas ciclovias, dificultando o uso do automóvel como meio de transporte. Ou que toda área verde urbana seja respeitada e cultivada, multiplicando-se parques pela cidade e exigindo-se um referendo popular para a definição de sua eventual outra utilização.
Um programa de atenção às demandas populares vai exigir uma presença forte da cidadania junto ao governo municipal, vai exigir mecanismos efetivos de participação e controle sobre a gestão pública, e novas regras para o funcionamento do sistema político. É preciso criar meios efetivos para cobrar dos vereadores e prefeitos eleitos seus compromissos assumidos enquanto candidato ou candidata; é preciso criar mecanismos de transparência na gestão, como a publicação dos principais devedores de impostos do município.
Não se trata, portanto, de apenas buscar a mobilização popular para participar do momento das eleições, mas de criar uma nova forma de fazer política que envolva diretamente a cidadania na gestão da prefeitura, na gestão dos múltiplos interesses envolvidos na produção da cidade e de seus serviços, no uso do solo, na alocação dos sempre escassos recursos públicos.
Silvio Caccia Bava é editor-chefe do Le Monde