Com a barriga de seis meses de gravidez, Jaqueline Teixeira Lopes, 23, aguarda a chegada da pequena Pâmela em clima de incerteza.
Moradora de Guaribas, na zona rural de Anguera (a 155 km de Salvador), ela se consulta mensalmente no posto de saúde da comunidade, seguindo o calendário do pré-natal.
Mas não sabe como fará nos próximos meses -a médica que atende no posto de saúde é uma das quatro cubanas do programa Mais Médicos que atua na cidade e deve deixar o Brasil até o final deste mês, após Cuba não aceitar as condições impostas pelo presidente eleito, Jair Bolsonaro (PSL), para renovação.
Para Jaqueline, não há segunda opção. As quatro médicas em unidades básicas de saúde da cidade são cubanas, o que faz de Anguera uma das cidades brasileiras que ficarão sem médicos na atenção básica com o fim do contrato entre Cuba e o Brasil.
Para tentar frear esse impacto, o governo federal anunciou na sexta-feira (16) que irá abrir edital para tentar convocar médicos e suprir vagas que ficaram sem profissionais.
A Confederação Nacional de Municípios afirma que 1.478 cidades possuem somente médicos cubanos em suas equipes do Mais Médicos -mas que podem ter médicos concursados ou conveniados de outros programas.
Já o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde estima 611 cidades que poderiam ficar sem nenhuma equipe médica na rede pública devido à ausência de cubanos. Em Minas Gerais, são ao menos 24 nessa situação. Santa Catarina tem outras 23 totalmente dependentes dos médicos cubanos.
A Bahia tem 850 médicos cubanos em 311 cidades. Com a saída deles, 99 municípios perderão pelo menos 50% dos médicos da atenção básica.
Outras 11 cidades baianas têm apenas cubanos na atenção básica e poderão ficar sem médicos a partir do próximo ano. Além de Anguera, a lista inclui municípios do sertão como Nova Soure e Pedro Alexandre, e do oeste baiano, como Correntina e Lajedão.
Em Anguera, cidade de 10 mil habitantes, a notícia da saída dos cubanos preocupou os moradores. Eles temem voltar ao cenário de cinco anos atrás, quando os postos de saúde não tinham médicos.
Na época, a maior parte dos habitantes tinha que enfrentar até uma hora de ônibus para buscar atendimento em Feira de Santana, a 45 km.
Moradora da zona rural de Anguera, a merendeira Sueli Gonçalves, 52, diz depender das médicas para tratamento de sua mãe, que sofre de diabetes e mal de Alzheimer.
“Elas vão sempre lá na roça para acompanhar minha mãe. Não sei como vai ser sem elas”, afirma Sueli, que criticou Bolsonaro: “Ele está fazendo coisa errada. Mas Deus não vai deixar que nossas médicas vão embora”, diz.
Vizinha de Sueli, a dona de casa Aurelina Oliveira, 47, faz tratamento de hipertensão e relembra das dificuldades por falta de médicos na cidade: “A realidade é que a maioria dos médicos estão em Salvador e não querem vir para cá”, diz.
A presença das médicas também é fundamental para as gestantes da cidade.
A dona de casa Simone Lima Ferreira, 22, teve o filho Samuel há apenas sete dias e realizou todo o pré-natal no posto de saúde do bairro, na zona urbana de Anguera.
“A gente não entende o porquê de elas irem embora. Fico triste porque sempre foram muito atenciosas com a gente”, afirma Simone.
Em 2016, quando venceu o contrato da primeira leva de médicos cubanos que foram para a cidade, os moradores fizeram uma festa de despedida. “Foi um chororô danado”, lembra Rogério Brito, 55, coordenador de uma rádio comunitária da cidade.
Das quatro médicas que atualmente atendem na cidade, duas criaram vínculos familiares em Anguera. Uma delas casou-se com o dono de um mercadinho.
A secretária municipal de Saúde de Anguera, Karine Ramos, diz que a saída das profissionais cubanas do Mais Médicos deixará a cidade desassistida. E cobra celeridade do governo federal na solução do problema: “Sem as médicas, será uma impacto terrível”.
A situação é semelhante em outras pequenas cidades do país. Segundo a Opas (Organização Pan-Americana da Saúde), 35% dos médicos cubanos que atuam no Brasil estão em municípios em que 20% ou mais da população vivem em situação de extrema pobreza.
É o caso de Lamarão (a 188 km de Salvador), que tem o 9º pior PIB (Produto Interno Bruto) per capita entre os 417 municípios baianos. Três dos quatro médicos de lá são cubanos e devem deixar a cidade nas próximas semanas.
Já em Nova Soure, que também fica no sertão da Bahia, são apenas quatro médicos –todos cubanos– cuidando da atenção básica da cidade, que tem 25 mil habitantes. “Uma atenção básica forte impede que esses pacientes cheguem até a média e alta complexidade. Sem médicos nos postos de saúde, vai passar a existir uma procura enorme no nosso hospital que é de pequeno porte”, afirma o secretário de Saúde de Nova Soure, Ernesto da Costa Lima Júnior.
Sem opção de atendimento, os moradores da cidade terão que se deslocar até Ribeira do Pombal, a 50 km : “É um custo para a cidade e um risco para os pacientes”, afirma.
A distribuição dos médicos cubanos aponta ainda que pelo menos 10% dos intercambistas estão em regiões de vulnerabilidade, caso do semiárido, Vale do Ribeira (SP), Vale do Jequitinhonha (MG) e Vale do Mucuri (MG). Outros 6,5% estão nas cem cidades com mais de 80 mil habitantes que têm níveis baixos de receita per capita e alta vulnerabilidade social.
Estão nessa lista grandes centros como Carapicuíba (SP), Belford Roxo (RJ), Cariacica (ES), Vespasiano (MG), Feira de Santana (BA), Caruaru (PE) e Altamira (PA).
As capitais e regiões metropolitanas também concentram boa parte dos médicos cubanos –16,8%. Em São Paulo são 73 cubanos; 45 no Rio, 21 em Brasília e 15 em Fortaleza.
Há ainda uma pequena porcentagem de médicos cubanos dedicada ao cuidado da população indígena, 3,5% do total, mas com reflexo imediato em determinados estados. Na Bahia, 17 das 18 comunidades indígenas são atendidas pelos médicos intercambistas e ficarão desassistidas.
Presidente do Conselho Estadual dos Secretários Municipais de Saúde da Bahia, Stela Souza defende uma solução negociada para amenizar o impacto da saída dos médicos: “Temos que encontrar um caminho menos doloroso”, afirma.
A decisão do governo de Cuba de chamar seus médicos de volta foi atribuída a posicionamentos de Bolsonaro, que questionou, entre outros pontos, a qualificação dos médicos cubanos e manifestou a intenção de modificar o acordo, exigindo revalidação de diplomas e contratação individual.